29 January 2008

POEMA DO RECOMEÇAR EM POESIA



Li hoje no jornal sobre um desaparecimento
Foi-se quem era o mundo de alguém
Aquele que chegava em casa depois das seis
Que resmungava porque a chuva lhe azarava
Que assombrava com suas aparições raivosas
que sujava o banheiro, entortando as torneiras
e ensaboando as toalhas,
desapareceu.
Aflições por todos os lados,
Choros convulsivos
Ainda procuram o desaparecido nas quinas da cozinha
e por debaixo das camas
Ainda assim, ganharam as ruas,
delegacias foram acionadas
e os vizinhos já pedem pela alma do extinto...
Mas está desaparecido
quem infernizou a vida das crianças
mandando que calassem a boca à hora da televisão
Os filhos alvoroçam-se , inconformados

pela perda do signo da coluna central
pensam no pior, aceitam o pior
quando o pior ainda nem sabe se será pior
E a esposa, quieta, num canto da sala
entre uma lágrima e um apelo
sorri, veladamente, o sorriso das viúvas antecipadas.
Isso é a vida,
um aparecer e um desaparecer,
à hora mais almejada,
quando a intolerância já ultrapassou a tragédia da emoção
para o alívio e sede de vida de quem fica.
Gosto da vida,
Da vida gosto mais do que termina em trágico
e do que recomeça em poesia.


28 January 2008

POEMA PARA OS MAGNÂNIMOS


Conte-me seus sonhos
e eu lhe contarei a maneira pela qual desando
Conte-me se já teve medo do escuro
se já sentiu seu peito palpitar à hora mais sombria
quando imaginava que fôra o álcool que lhe tiraria a razão
Tenho desconfiança da sua magnitude
Os magnânimos dificilmente acertam à hora de dizerem um não
São magnânimos em tudo
O não é o abismo do sim que se joga todo dia dos meus penhascos
Conte-me sobre sua vigília
que intercala os seus suores de quando é noite
e de quando é dia...

Depois de esquadrinhar seus sonhos
Faremos dos fragmentos que sobrarem umas poucas colagens
O que for PB eu penduro no meu quarto
O que for vermelho ou qualquer dor
Esses eu distribuo por todos os faróis da cidade

Serão como eu estou agora;
Vivos, na cor
Inúteis, na sua complexidade.




27 January 2008

EU MESMA


Hoje de manhã
Uma folha de uma árvore circunspecta,
caiu, assim, à minha frente
Estupenda folha, estupenda manhã
O dia estava cinzento,
pouca gente havia andando pela rua
e eu pude exercitar a fala do espelho
O que eu aprendi hoje foi a lição
mais preciosa da minha existência
A despeito de tudo
de todas as guerras internas que me assomam
e das externas que explodem, apesar de mim,
o mero acontecimento dessa folha caindo,
à minha passagem
me fez acreditar no extraordinário fatalismo
Enquanto houverem folhas
e passos
o mundo continuará a ser o mesmo.
A despeito de tudo,
Alegro-me por ser a mesma.

POEMA DO SENTIMENTO À HUMANIDADE


Aos sorrisos dados, a minha alegria
E à sua paz de pomba de cativeiro,
nervosa e palpitante,
a minha despedida
Nunca soubemos o que foi o mal
Nem o que sobreviveu como náufrago aos vagalhões da nossa história
Hoje me sinto menos engarrafada e mais volátil
Deixo que meu pensamento me faça o melhor
Se nós todos pudésssemos escolher entre dançar uma balada
Ou esclarecer nossos passos dentro do quarto
Por certo estaríamos nos amando como se ama no manual
Porém, a tarde já começou
Os animais pastam, placidamente no campo
No Japão alguém agora se suicida
E um outro bebe, sôfrego, pinga de arroz
O que está dentro da casualidade
Sobrepõe-se a nós
Temo por todos os acontecimentos que virão
E nós,
Bem, esse nós que tanto asfixiamos,
Tratamos de agarrar
como os heróis dos gibis de prateleira
Cheios de cores, de caras e de virtudes,
presos e imóveis, porém, dentro do quadrinhos de papel.
Nossas nobres ações foram de plástico
surjamos nós, dentro das nossas distâncias
mudos, apáticos, embasbacados,
convictos das expectativas fora de nós.



22 January 2008

POEMA DE IR DORMIR NUMA TERÇA FEIRA



Tomei um trago
Estava curiosa para sentir o que é a ausência
Primeiro um calorzinho
O sol se pôs sem que eu visse
Todos os quilates do meu único brilhante
me deram uma resposta;
estavam fartos de mim
Eu pensei cá comigo
Que a vida é uma coisa boa
nem bem a gente cai,
a gente sai dançando
Se amanhecer chovendo vou parar de jogar paciência
e abraçar o que é real
Os poetas nunca descansam.


20 January 2008

NÃO MALDIZ, NÃO BENDIZ


Não gosto de ser poeta;
Queria ser como a mulher negra que vi ontem lavando a calçada
Ela segurava fortemente a vassoura, com ânimo escravo
E quando a chuva veio,
ela resmungou...
"mas que merda de chuva!",
naquela estupefata reação de rejeitar o complemento
A minha poesia não maldiz e nem bendiz a chuva ou o trabalho,
Não bendiz, não maldiz,
É só o complemento da humanidade.

TAPETE PERSA



As coisas mais ricas
As coisas mais sujas
As coisas mais tétricas
Todas eu joguei debaixo do tapete persa
Que eu paguei em vinte e quatro prestações.


19 January 2008

TEUS OLHOS


Teus olhos são um caldo de cana escuro
que gritam quando me vêem
Se teus olhos pudessem ser meus olhos
Não teriam a doçura desse teu melado
Nem tampouco a tinta que os fez escuros
Seriam os meus olhos,
dentro dos teus olhos
a enxergar a dor dos meus
dentro dos teus.

POEMA DO APARTADO


Não nos falaremos mais,
a folha que cai do galho que a sustentou
não sente-lhe mais a falta
não lamenta;
Os dois, antes num só
e que agora são dois solitários no apartado,
sabem que é a hora
e que o círculo se fechou.


18 January 2008

BEIJO SOPRADO


Mandaram-me hoje um beijo soprado às pressas
Ri do beijo e do sopro pelo qual o beijo veio
O sopro passou,
mas o beijo,
tem ainda em mim

o longe do molhado dos lábios de quem o mandou.


17 January 2008

NA MARCHA DA ESTACA


O que me ensinou o cavalo?
Tenho teimado em aprender do cavalo
A rigidez da nuca
A nobreza das veias postadas uma a uma sobre o porte
Os adversos cascos.

Onde eu doravante for, serei cavalo
Quando falar contigo, serei cavalo
Benigno colo que te levará
Quando falares comigo, serei cavalo
O ar de quem está desamparado,
De quem dispara, trêmulo, na sofreguidão da verdade

A verdade que está em mim é boa fé
A tua verdade é a boa fé do cavalo;
a extrema convicção de marcha
senão para frente,
na marcha da estaca.






16 January 2008

POEMA DA PIMENTA VERDE


Quando tudo está regularmente certo
E a jabuticabeira já deu jabuticaba
Preta, preta,
doce por dentro
dura do lado que se mostra
Venho lhe falar
Não se preocupe com o amanhã
Se lhe amarem,
se lhe beijarem o pescoço,
até que seu sentimento se expanda
e que você tenha um surto de prazer durante o dia
e uma palpitação de desejo quando for de noite,
ainda assim, haverá o amanhã.
Se deixarem de lhe amar
enfiando-lhe pimenta verde nos seus olhos puros
e que você tenha o ímpeto de besta a atacar seu par,
Preocupe-se em colocar apenas um passo à frente do outro
Igual à jabuticabeira
Irá a sua vida
Preta, doce, dura,
Mas como a pimenta verde,
Lhe vingará.


15 January 2008

NOSSOS PASSOS


Nem bem segui
Senti que meus passos ecoavam para trás
Dando-me a impressão investigativa de uma pequenina perda
Quando se é só,
Não se sabe se o barulho intermitente das pisadas
ainda é aquele que ouvimos no passado,
fiel, grudento, acompanhado
Ou se são só os solitários, nossos passos.



14 January 2008

POEMA DO BOM DIA


Tivestes um bom dia?
Amaram-te?
Desejaram-te o que te desejo?
Arrancaste de ti o que era a negação
e confirmates a tua previdência?
Não te esqueças de sonhar um pouco
quando for noite
Nem te deixes incrédulo quando o primeiro sol surgir
Faças como te sugeres fazer
Ama-te primeiramente,
adorna-te, enfeita-te
Fortaleça-te para o pior
e encanta-te no restabelecimento
Depois, quando estiveres na condição sabática das explicações,
deseja-me um bom dia.




POEMA DA CONSOLAÇÃO


Leia-me como se lesse a cartilha Suave,
surpreendentemente, na fala ansiosa do tatibitate
Nem são tão importantes a leituras de mim
Aqui sempre amanhece branco
Entardece rósea
e quando anoitece, azul
No meio tempo das cores, eu surjo
Sento-me, esplêndida ao seu colo,
faço com que possa sentir o meu perfume
(laranjeiras trazem o perfume impregnado de mim)
depois me esvaneço,
Se não me quiser mais,
amanhã, eu tardo.


13 January 2008

POR DENTRO DO SEU DENTRO


A mulher que eu sou pede passagem
Nada de traços débeis,
Nada de fragilidade.
A mulher que eu sou,
a bordadeira atenta que vive em mim
a mucama que se ocupa de remontar as coisas
a graça aérea das libélulas que sustento
e a agilidade graciosa das corças que me permite servir
são os ícones representativos da mulher que eu sou
Sou a insígnia da sua farda
e a tarântula comprometida que lhe mordeu o braço
Portanto, encantoada,
Por mais que você faça,
Por mais que alce os vôos premeditados da sua visão,
Por mais que se aqueça junto aos fogos que você julgou eternos,
Prá sempre estou aí,
por dentro do seu dentro.



11 January 2008

SINCRONICIDADE


A ave veio cortando o céu, na rasante desesperada
quando nada podia lhe parar,
Nem meu pensamento,
que vinha desabalado
em direção contrária a espantou
A sincronicidade do meu pensamento com a do vôo da ave
não propiciou o racha no ar
porque o que é físico ainda nao compreende a emoção
Mas a sincronia existiu
entre o querer da ave,
entre a sua enérgica vontade
e a fortaleza desse meu pensamento
que voa e que se estende para onde ordeno
às vezes pode se chocar;
às vezes, é só o susto da passagem.

06 January 2008

SUPORTEMOS O VERÃO




Falando de verão
Falaremos dos dias compridos de indolência que se seguirão
Quando não chove de manhã
Chove à tarde
Uma chuva mal vinda,

porque é vinda da improvisação
Não tem nada no céu, e ela surge, negra,
dentro da alquimia
vira uma cortina de branco inundando tudo
Mal bate no asfalto e esvai gostosamente no calor ...
Não sobra gota a contar sobre outra gota...

Verão que combina com o picolé de cereja da esquina
Ruim feito o diabo, enjoativo de tão doce,
feito o amor de verão, atraente,
mas fraco e breve.
Não há torso nú que não goteje em suor
As peles estão lustrosas,
O ar oprimido está abafado
Moscas varejeiras varejam por cima de nós
Surtam de liberdade,
Estão em toda parte, experimentando os suores
Noite e dia são a mesma coisa
Calor das 7 às 7,
Da meia noite à meia noite
Pessoas comentam:
"Que calor!"
Para o calor ficar ainda mais acalorado
(as pessoas bem que podiam se calar diante de tanta barbárie;
um pouco de silêncio nesta agora refrigeraria a alma).
Vista-me com biquinis sumários
E eu emudecerei
Dê-me cocadas brancas à beira da praia
E eu me mudarei daqui ...
Saudade que tenho das tardes de outono,
umedecidas, frágeis,
quase dia, quase noite...
Saudade de ter a manta a meus pés
o cahorro, também no seu silêncio
usufruindo do ar rarefeito e calmo, inspirador
Vontade de pegar um livro que seja bom
tomar chocolate quente depois da janta,
e depois ir espiar lá fora,
o vento cortante que irá substituir o dia mais ameno
Saudade que tenho de mim quando a natureza não fervilha,
mas que se aquieta
e os nossos corpos agora, brancos, arrepiados,
de outono,
descansarão à beira da varanda...
Contaremos nossos casos
diremos uns para os outros que já está fazendo frio
que o inverno deste ano será rigoroso
esfregaremos nossas mãos, uma entre as outras,
sorriremos,
nos arrepiaremos,
dormiremos bem agarradinhos a um amor
que temos e que merecemos.

Que venha o outono
Suportemos o verão
Façamos do verão uma viagem de volta,
uma viagem
de se esquecer de que se foi.

(O poeta que é poeta, ama o que o isola da multidão;
se quer o verão, fica com o verão
guarda-me o outono,
dê-me o mais perfeito outono
deixam-me com o outono, então)





04 January 2008

CATARSE


Pensei em falar de mim
Não posso falar de mim
Isso seria a catarse do básico
Falemos então do meu eu
Isso é a catarse do mágico.


03 January 2008

VIAGEM


Queres um ano novo?
Toma então teu ano novo,
Amassa-o como se amassasses um pão
Sova-lhe e alisa-lhe
Faz dele teu sustento e teu ânimo
E espera paciente,
que ele fermente e que se aqueça.

Mas se quiseres o velho,
aquele que ainda persiste
o antigo que até agora perdura
Não o amasses mais
como já lhe amassara no passado
Tampouco sova-lhe
Nem alisa-lhe,
Coma-o degavar
Salivando cada parte que já lhe foi destinada
Sorva cada fração como se fosse a tua fração

O ano novo que lhe virá
Nada mais é do que o antigo que aí está
Próximo à tua boca
Debaixo da tua língua
Próximo do teu paladar.

O novo reaparecerá
em meio ao velho
Não há começo nem fim nestas paragens
onde vivemos
Basta que lhe consintas
E que lhe permitas que venha.

A ano antigo,
ainda há de apresentar-lhe suas surpresas
E seus delírios
Portanto, ama-lhe, toca-lhe
Deixa que o prolongamento do que já foi
Do que está sendo
e do que promete que será
lhe apaixone
e lhe leve até onde lhe for traçado
Um caminho, um rio,
uma ponte ou cidade
Destinos são infindáveis;
O que importa é a viagem.