20 August 2006
PARA A MINHA MÃE
A última vez que vi minha mãe ela não me viu.
Estava já envolvida em coisas mais importantes do que a vida. Estava olhando pra dentro. Às vezes tentava enxergar a minha imagem, mas a força estava lá; dentro. Imediatamente os olhos verdes partiam. Havia um mundo intrigante do lado de lá. Parecia melhor.
Há pouco pendurei um retrato de minha mãe à cabeceira da minha cama. É uma imagem de moça. A mais bonita que conheci. Os olhos verdes estão olhando pra mim, vindos da parede. Serenos.
Serena você está também agora, minha mãe. As dores lhe comprimem, a vida lhe castiga, o corpo luta, mas a serenidade não estanca... As dificuldades da sua vida lhe envergaram, lhe rebaixaram, anularam o seu sorriso e a sua esperança. Mas os seus olhos verdes, milagrosamente, ainda denunciam paz, em meio as suas lutas.
Olho o retrato de minha mãe e tenho vontade de afagá-la . No entanto, ela apenas me fita; os olhos verdes a remeter um pingo de atenção vindos da imagem morta.
É essa a imagem que você ainda tem, mamãe, diante da violência que se lhe assomou durante toda a sua vida.
Tive medo do seu fim mamãe, talvez porque tivesse do meu.
Te reconheço em mim até nos gestos mais corriqueiros, nas reações, no pranto.
Assim como você, também passei a aceitar as decepções do destino como quem tem a obrigação de continuar um sacerdócio de renúncia. Procurei nas minhas profundezas um quê diferente do seu, mas, em vão... o que aflora em mim é o seu espírito manso, o dar de ombros cansado, a pequena animosidade, o tédio.
Procurei por anos sintetizar a sua desmotivação, minha mãe, quando finalmente reconheço que somos iguais. Procurei em vão em você, gestos de revolta, lampejos de decisão, vestígios de fortaleza, bastas... No entanto, aí está você, como sempre esteve, a olhar para dentro, a expressão do rosto a demonstrar lamento...
À sua fortaleza, contudo faltou ação e gestos. Sua voz reprimida é que lhe redimiu As lutas que lhe sobrevieram, lhe simplificaram. A vida lhe engrandeceu. A aceitação, o resignar-se ao segundo plano, as vontades adiadas, todos os projetos sendo desfeitos...
Você não queria, minha mãe, mas você venceu... Não como vencem os grandes lutadores, os céticos, os racionais, estes que empunham bandeiras e disseminam desafetos.
Você venceu serenamente, com o seu dar de ombros, seu muxoxo, à sombra...
À sombra também foram seus passos, como quando você se levantava à noite, tateando as paredes da casa em busca de algo sem acender a luz. Como você se orgulhava de não precisar acender a luz! Compreende agora? O recusar-se a acender sua própria luz! A viver à sombra das circunstâncias, a não ascender ao papel principal do mundo e das coisas..
Você não quis, mamãe, mas no entanto, você ainda brilha, a contragosto, através dos seus mansos olhos verdes, de fastio e de perdão.
Perdão, minha mãe, por muitas vezes não ter compreendido a sua aceitação.
Hoje o destino me remete a você. Olho a sua fotografia, e você parece me dizer que tinha que ser assim.
Volto a olhar para dentro de mim, e neste momento, decido por você, por acender a luz. Nunca mais os gestos no escuro, a palavra abafada, a voz rouca, minha mãe. Viverei por você o que você não pode modificar, ou não soube, ou simplesmente, não quisesse, por não compreender outra direção...
Você foi digna, minha mãe, foi bela.
Agora que seus olhos teimam em olhar para dentro, recusando-se a querer ver o mundo sempre igual, concluo que você escolheu bem. O mundo aqui fora continua do jeito que você conheceu, feio e mau. As pessoas maltratam a gente, a vida agride, as palavras duras não deixaram de ser ditas, mamãe.
Por certo, dentro de você , deve haver a música do universo, o murmúrio das matas, a melodia das conchinhas do mar... Deve existir um azul de cristal em todos os seus céus, e há barulho de águas nos seus ouvidos. Isso, minha mãe, continue a olhar para dentro de si mesma, a desfiar a suas histórias de criança para a sua alma, a escutar a caixinha de música da sua mocidade...
Sonha, minha mãe... Sonha hoje o que não foi possível. Transforma os seus ai-ais em acalanto... Repousa, mamãe, aquieta-se. Suave será o seu sono. Você ficará como que encantada, a reviver a magia dos seus devaneios, que de agora em diante será sempre assim...
Todas as suas lutas já estão vencidas.
Descansa, minha mãe, que mesmo à distância, embalarei seu sono, e lhe oferecerei meu braço, pra que ninguém lhe canse, lhe incomode, lhe marque.
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