22 August 2006

BOLINHAS DE CUSPE


Quando a gente é criança descobre umas besteiras que ficam a vida toda com a gente.
Eu devia ter uns cinco ou seis anos, talvez até mais, porque criança de antigamente, mesmo grandinha, tinha a cabeça de menino de seis.
Morávamos numa casa cujo quintal é a única lembrança que posso guardar. Tinha um cimentão branco, escorrido, e quantos raspões nos joelhos não tivemos ao meio a todas as brincadeiras!
E era isso só. Um quintalzão largo, com uma escada empinada e alta, sem capricho e corrimão.
O sol batia forte, inteiro. Esparramados no chão, ali estávamos nós, os pequenos, brincando com as coisas da época, que era uma salinha de estar e outra de jantar, meticulosamente feitas de caixas de fósforos. Que graça de mobília! Que vida miniaturizada de então!

Papai e mamãe deviam estar viajando por aqueles dias. Nem sei quem tomava conta de nós, porque na verdade, acho que nem precisávamos de muita supervisão. Era o quintal o mestre, a empregada, o companheiro...
Sentada num dos primeiros degraus, perguntei à minha irmã Suzana, quando papai chegaria. Diante da pergunta inusitada para uma criança assim tão pequena, longe da escola e sem noções de abstrato, minha irmã, que ainda tem dois anos mais do que eu, e portanto, mais vividinha, pôs-se a passar o dedo indicador na língua e a sorver um bocado de saliva.
Ia molhando a ponta do dedo e imprimindo ao cimento umas bolinhas de cuspe, uma atrás da outra, a fim de mostrar concretamente o número de dias que faltava para a chegada.
Pobre Suzana... O sol competia rapidamente com as marquinhas, tão grande eram elas em número, e ia apagando rapidamente o esforço, o tempo, o vácuo.

Fico até hoje sem saber quando papai e mamãe voltaram. Só o que vi é que foram muitas as impressões no cimento.
Assim ainda a vida se mostra para mim.
O sol bateu inclemente sobre o meu coração, que não deixou nem lembranças concretas neste cimento quente.
Ainda sou aquela que não aprendeu a abstrair a vida, que não aprendeu a sair do degrauzinho, que ficou observando o desaparecimento do real, do esforço do real; que se agarrando as lições dos outros, incompreensíveis, altas, ainda assim, franze a testa, e diz que compreende.
Sou ainda aquela que se ficava em cócoras, agarrada aos paninhos, os olhos esbugalhados, olhando assombrada a vida esmaecer-se, a não entender o óbvio, a falta, o nada.
Eu sou aquela que não viu o portão, que não sabia que existia um portão, que se deixou ficar naquele quintal, que não se libertou porque simplesmente não soube, e que sente medo, um medo terrível do concreto, da razão.
A vida continuou tórrida, e o que sobrou, foi a limitação do quintal, a coisa árida, a total ignorância das coisas, e até hoje, como diria... sem nenhuma supervisão.

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