12 October 2006

NETWORK OU A REDE DE RELACIONAMENTOS


Rede em Inglês é “net”. Work em Inglês é trabalho, que pode ser qualquer trabalho, o formal, o informal, o de casa, o da escola, mas também, trama, qual a teia que a aranha tece ou a rede que o pescador alinhava, ou a colcha de retalhos que a vovó ajusta. Rede de relacionamentos é “network”. Inglês é uma língua companheira, uma língua que junta as palavras, umas com as outras, formando uma outra palavra, que é auto-explicativa, o óbvio ululante. Outros exemplos: “Batman”, o Homem morcego, “ Eyedrop”, colírio, que coisa mais tosca!!!
Convivo com essa língua quase que diariamente há mais de trinta anos e há mais de trinta ainda me surpreendo diante de uma palavra nova, juntada, abro um sorriso de surpresa e não surpresa, claro que sim, como não tinha pensado nisso antes?
O network é uma palavra que anda sendo dita por aqui e por ali, ouço-a até nos ambientes mais ambíguos, gente que sai falando e pasme, acerta! Outro dia eu ouvi de um entregador de água, desses que andam de moto com uma caçamba atrás, sempre suados. Veio me entregar o galão, e enquanto retirava da carteira o maço de notas a fim de me entregar o troco, foi falando: “ Entrego muita água neste pedaço, fiz aqui meu network”. Pirei. Pirei na batatinha. Em questão de segundos, meu cérebro passou a funcionar em muitos decibéis, repensei sobre minha profissão, meu target, minha hora-aula, meus alunos adultos, muitos deles com tanta dificuldade para certas palavras, as infinitas estratégias de memorização para ajudá-los, meus cursos de reciclagem, quando um rapaz que me pareceu de pouquíssima instrução me solta uma dessa, assim, como quem diz: “ A senhora tem 10 centavos pra facilitar o troco”? Não, o que veio foi: “Fiz aqui meu network.”. Mais uma hora ali, ele falaria tudo, de uma vez: usando o Presente Perfeito: “ I´ve done my network here”. Pronto, eu acharia que o mundo estava certo, e só falando em Inglês com uma professora de Inglês, não, nada mais justo, entregador de pizza, água ou de chinesa. Se eu fosse professora de Francês, talvez ele dissesse com a maior cara de santo: “ Oui, tre bien, merci”. Não me surpreenderia.
Eu também faço meu network aqui. Aqui no meu prédio, no meu bairro, no máximo na compreensão de 20 quarteirões de onde estou e que quase nunca passou disso. Aqui estão todos os que preciso (e não os que precisam de mim, olha isso!). Cabeleireiro, manicure, médico ginecologista, médico oftalmologista, dermatologista, e todos os médicos “ista” que se possa supor. Nem penso muito, sei que há a padaria, a papelaria, meu trabalho, a boutique, a loja de calçado, a farmácia, o posto de gasolina, enfim, uma micro cidade ao alcance de qualquer par de pés. Qualquer par de pés, especialmente o meu par de pés de passinhos curtos e visão limitada, onde o perto já é longe demais, e o longe, inexiste.
Porque ando praticamente todos os dias pelos mesmos lugares, fui adquirindo através do tempo uma categoria avulsa de amigos, que só não os chamo de amigos verdadeiros, porque não há capacidade em mim de parar e travar uma conversa mais profunda sobre a vida, minhas aspirações, traumas, anseios e frustrações. Não porque eu seja preconceituosa, arrogante, ou de nariz empinado. Mas aqui confesso e confesso a mim mesma: Sou tímida. Uma timidez que me faz corar a qualquer sentença que esteja fora do script ou de situações que quando são motivos de risada, rir,em mim me fazem chorar. Não gosto de pagar mico.
Entretanto, ando e vou vendo as mesmas carinhas de sempre, nos mesmos lugares de sempre, e com as mesmas atitudes de sempre. Lembra-me um jogo que minhas crianças tinham e que jogavam pra valer aqui em casa chamado Cara a Cara. Todas as carinhas iguais, porém, estereotipadas, como o negrinho com o mesmo formato de rosto do loirinho, o homem de bigode com a mesma feição da menininha de sardas. As pessoas daqui são assim, o que muda é o cabelo, a mesma compleição facial, mas estão sempre obviamente colocadas, estrategicamente posicionadas para que eu passe e diga, "Bom dia".
Muita gente me conhece, eu conheço muita gente, em geral, não sei o nome deles, em geral também não sabem o meu, eu é claro, muitas vezes sei de suas profissões, pouquíssimos sabem da minha.
Hoje é quinta feira, entro na loja de conveniência, a atendente é sempre a mesma, vem pra me atender, faço o que quero e o que não quero com ela, troco cheque por dinheiro, acho que até trocaria dinheiro por cheque, mas isso seria loucura minha e também muito abuso, e nunca pedi isso a ninguém. Mas pergunto sobre a vida dela, lhe dou conselhos rasos quando pede, arrisco a falar alguma coisa que aprendi que não dá certo, tudo fica no superficial, suspiramos ao mesmo tempo porque o dia está quente, nos despedimos sorrindo, quase sempre é sempre assim.
O frentista do posto me coloca à frente dos demais quando o posto está lotado e eu sorrio pra ele. Só isso. Sorrio e o abre-te-sésamo acontece. Há 15 anos freqüento esse posto, acho que há uma eternidade esse frentista trabalha lá, somos amigos, ou não? Por que ele deixaria um Siena estranho embicar na frente diante de um sorriso de 15 anos que não diz nada, nada implora, nada suplica, nada pede, só sorri? " Passa na frente, minha filha" . Não é corrupçao, é suborno de sorriso. Nao enjaula ninguém.
E assim vai com tintureiro, no cabeleireiro, na vizinha de sala do meu trabalho, nos falamos um pouco, das dores de cabeça que temos, se chove ou não chove muito, e no final, que nos gostamos muito, muito.
O network se expande também para o homem que vende biscui no semáforo, eu passo, ele grita, “ Oi, moça, vai biscui hoje? “ Há uns dois anos, “ vai biscui hoje?” e nunca vai biscui, mas temos afeto um pelo outro, ele me reconhece, eu reconheço nele a familiaridade da vida que me circunda. Nao tenho nenhum interesse nele, ele não tem mais em mim, já conformado por saber que nunca comprei e nunca vou comprar. Business ao contrário. Nao nos inimiza. Nos fortalece.
E há o homem do cigarro que outro dia eu homenageei em um poema meu. Nem imagino seu nome, moço simples, meio aparvalhado, que guarda os carros na rua a troco de centavos. Nunca guardou um carro meu, não estaciono por lá, mas vira e mexe quando o tráfego está parado, conversamos um pouquinho. Nossa amizade começou assim: Eu, fumando com a mão esquerda pra fora do carro para que a fumaça não invadisse muito o interior, cigarro recém aceso, tinindo de tão bem aceso, ele vem, retira o dito cujo dentre meus dedos, sorri pra mim, me olha com muita educação, e diz assim, na lata " Posso pegar”? ante a minha expressão de incredulidade diante de um roubo, sim, roubo ou assalto em plena luz da manhã. Fiquei muda. Isso sempre me acontece, algo surpreendente ocorre, minha reação é de traseira e nunca de dianteira. Não reajo. Ele abaixou o rosto até o meu rosto, deu um sorriso cândido, inocente até, e disse: “ A senhora tá boa, né?”
Sim, eu estava boa, até agora estou, tanto que ficamos amigos de rua. Amigos que não têm compromisso nenhum, onde não há expressões virtuosas de afeição, que não explica nada, que não fere, não conserta situações, não compra presente de aniversário e muito menos racha a conta do bar no final. Amigos de jornada. O dia amanhece um porre, tenho que sair, passo lá, sei da garantia da sua presença, ele me grita de onde está: “ Oi, a senhora está boa, né?” Eu fico boa, instantaneamente.
Já aconteceu de que passando ali, sem que ele me visse, já tirasse um cigarro novinho da carteira, e entregar a ele em meio ao transito, lá atrás um obrigado se esvaindo.
Adoro os meus amigos de rua, eles também devem gostar de mim, somos sorriso e sorriso. Interesso-me por eles, torço pelas suas vidas, quero que se dêem bem, que se sintam felizes. Sinto-me feliz também por conhecê-los, por tê-los feito meus companheiros de todo o dia, por saber que de alguma forma eles também esperam que eu passe, que lhes dê uma palavra de carinho e que eu receba esse carinho de volta também.
Dizem que amigo a gente escolhe, não sei se isso está muito certo. Não escolhi nenhum deles, mas há pelo menos uma dúzia de pessoas que escolheram passar no meu caminho de todo dia, que me enchem a vida de alegria, que apenas com sua presença me dizem que o dia está certo, que as coisas estão correndo bem e que amanhã teremos um futuro.
Meu network está completo, acho que não falta ninguém, depois descubro que o tosador do meu cachorro também sabe jogar o Cara a Cara, me inclui na rede dele e é mais um pra quem eu vou sorrir, sorrir, sorrir.
Viva a vida!

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