10 August 2006

DILÚVIO

Hoje o dia não amanheceu e desconfio que não amanhecerá. Dentro de mim ainda há lua minguante
e estrelas miudinhas, rendadas, aflitíssimas, boiando no meu céu extenso e preto.
Dentro de mim há trevas, com pouquíssima luz, e é noite, como naquelas madrugadas de minha infância quando eu aplicava o ouvido, temerosa, para entender melhor os barulhos noturnos, os passos na calçada, e não se via nada, breu de tição, alma de piche.
Dentro de mim, em meio à escuridão, é preciso urgente que eu levante um barco. Construo esse barco, a mãos forçadas, para realizar talvez o que fosse o período de reclusão de meu próprio dilúvio. É noite dentro de mim, é cegueira, e há agora um eminente toró a se derramar sobre o meu barco, que acabo de inaugurar.
Um barco pobre, tosco, rústico, sem nada de compensação ou acessórios de luxo. Barco de quem não sabe o que é barco, e às custas da própria imaginação, desejo me entrincheirar lá dentro, solitária, calma e paciente, a esperar que a tempestade venha desvairada, se forme, e se alimente de mim mesma, de minhas angústias, das coisas desejadas e frustradas, das cruzes do meu andar cada vez mais lento, para depois, vagarosamente, com o passar dos dias, quem sabe meses, ou até uma vida toda, não sei, ou o resto de expectativa que ainda me sobre, ir reduzindo a sua força de cão, ir se minguando, preguiçosamente, até resultar numa fragilidade de rosas, e amainar com pingos aqui e ali, a minha miserê de ser humano que conhece sua condição de fraco. Condição de quem rodopiou, rodopiou no vento, mas, sabe-se lá de que maneira, saiu inteiro, mas atordoado, meio trêmulo, meio frouxo, entretanto, com a sensação de quem venceu. Venceu? Venceu o que? Venceu covardemente as próprias lutas, a própria insistente e insignificante dor, na verdade, venceu a decisão de não ser maior que a própria dor.
Talvez haja uma pomba nesse fim de dilúvio, uma pomba que anuncie terra firme e início de serenidade, e que haja sol, e que este volte a brilhar em meio às arvores, que eu mesma inventarei, e pintarei dos mais diferentes matizes de verde e musgo.
Desejarei inaugurar essa pomba branca, pensarei em adornar um céu também.
Mas não hoje. Não amanhã. O futuro deverá vir, como tudo vem... Dentro de mim, porém, é preciso que hoje haja barco, vento, noite e tempestade.
É o correto para essa minha estação do espírito. É o honesto para a minha condição humana. É justo.

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