31 December 2006

SOU FELIZ


Dedico esse poeminha ao Celê, que me presenteou com sua presença aqui no Pé de Pitanga, e ainda por cima, generoso como é, indica-me um site para busca de imagens que muito revolucionará e embelezará o blog.
Aqui vai Celê, uma imagem retirada do Corbis.
Beijos, beijos, e muito obrigada!
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Sou tão feliz
Não porque viva,
Mas porque morro
Através das palavras que eu crio.

DESABAFO


Minha gente,
Não sei vocês,
Mas não agüento mais ver Saddam Hussein enforcado
E re-enforcado
E estampado em todos os jornais
Com aquela cara de quem era um pária e em instantes virou mártir
A carranca fechada segundos antes da execução, os olhos esvaziados
E o semblante depois da morte, de vitória,
Mesmo com os olhos já cerrados

Não posso deixar que me enforquem todo dia
A vitória de alguns por sobre mim
Traz-me a cara que eu exibo agora
Metade de Saddam, corajosa e fria
Metade de Ceci, aflita e aparvalhada
Se vejo Saddam morto toda a hora
Me vejo executada também a vida afora.

31 DE DEZEMBRO


No último dia do ano
Perguntam-me, insistentes, o que fazer
Com o próximo da vida
Jogo meus olhos pesados para cima
Percorro o teto à busca de resposta
Que poderia vir em forma alternativa
Como questões fechadas do vestibular;
a) Ir ao cinema muda e sair calada,
b) Matar o passarinho engaiolado,
c) Comer todo o feijão e dispensar a janta,
d) Musicar meus versos sem escrever nada.
Meus olhos fixam-se e grudam-se na mosca
Que pousou à beira do telhado
Vem-me a resposta assim, de imediato
Farei o que já fiz, mas ao contrário
Morrerei primeiro a morte bem matada
Da vida arrebentada e passada
Depois me travestirei de mosca atordoada
Como essa que está aqui, aquietada
Voarei um pouco, só um pouco basta,
Para me assentar de longe,
Ao alto, inofensiva e distraída,
Enquanto o novo ano voe e passe.

30 December 2006

PASSANDO ROUPA


Estou passando roupas
E o ferro quente sobre a fibra dura
Lembra-me os versos que construo sobre a página
Se jogo a quentura do meu peito sobre o nada
Volta-me a lisura de minha alma já aliviada.
Da brasa não se ressente o pano
Nem o vapor que sobe o apavora
Construo os meus versos enquanto passo
Passo a minha alma a limpo
E repasso.

ARTISTA


Eu sou artista
E nisso não há nenhum mérito ou glória;
Fui ficando triste
E fui interpretando a arte
Através das vicissitudes
Que eu vejo
Mas que ninguém vê.
Se há festa em volta
Claro que vejo a festa,
Todavia vejo também a solidão de alguns;
Se há velório
Vejo o velório,
Mas vejo também o alívio de alguns presentes
Pela partida definitiva do ausente.
Se não há nada,
Vejo o tudo,
Porque o nada também inspira a sofreguidão dinâmica da vida
Se você está rindo agora
Vejo que seu sorriso
É metade alegria
Metade tolerância,
Metade luz
E a sua metade mais sombria
O ser artista é uma clarividência
Que não expõe o mundo
Nem adivinha, nem pressente,
Nem profetiza
O ser artista é sofrer junto.

EU CHORO


Eu não tenho vergonha de chorar, não senhor,
Porque ninguém teve vergonha de me ferir
Vergonha por vergonha, fico com minha lágrima
Que é honesta,
Autêntica demonstração do afeto renegado;
A vergonha de quem fere é punitiva
Embora não haja penalidade na espada invisível
Que fere, mas não sangra
No entanto, corta-me no flanco mais profundo
Abrindo-me em ferida.
A vergonha da dor é justa,
Porque é defensiva,
Porque é inocente,
Porque tentou, em vão, ser intempestiva.
Se choro, estou correta
Se não choro, sou permissiva.

VOLTA


Poesia, amada minha,
Volta pra mim...

INFELIZ


Certo como o dia
Eu amanhecerei mais fria
Não porque eu tenha desistido,
Mas porque de mim alguém já desistiu primeiro.

29 December 2006

FELIZ ANO NOVO


Humanidade,
Como poderemos nós festejar o Ano Novo,
Se há um Saddam Hussein indo à forca em questão de horas,
A lei do Corão, o " olho por olho, o dente por dente"
Se há PMs ocupando vinte e três favelas na cidade do Rio,
A mais maravilhosa das cidades,
Se o mega pugilista e mega exemplo de esportista Mike Tyson já foi preso por porte de cocaína,
Quando há tantas crianças moldando neste momento seu exemplo,
Se há loucas mulheres todos os dias jogando filhos em buracos,
Porque filhos são estorvo e não a realização?
Se a vida é dura,
Se há traição,
Se há a hipocrisia de Hipócrates
E a lei de Cristo do dar a outra face,
Mas que é prá apanhar mais e sem nenhum perdão?
Ah, Humanidade,
Espera que o Ano Novo venha um dia
Quando nós todos não estivermos mais aqui
Que nosso Ano Novo chegue para nós individualmente
Coincidentemente com o nosso último suspiro;
Não posso desejar Feliz Ano Novo pra ninguém
Desejo sim, resignação e paciência.
Feliz Transtorno 2007!

28 December 2006

BALANÇO


2006 foi o melhor ano da minha vida
É que eu não tinha vida
Mas afinal, o que é vida?
Ah, já sei;
LIBERTAÇÃO
CELEBRAÇÃO
MOTIVAÇÃO
DESEJOS
AMBIÇÃO
SAÍDAS
VIVA!!!!

23 December 2006

PROPÓSITOS DE NATAL


Grande poeta, Amilton Maciel Monteiro, que não poderia deixar de estar nesse Pé de Pitanga.
Padrinho querido, Feliz Natal também.
Eu te amo.
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Façamos do Natal um tempo de ternura
Em nosso atribulado modo de viver...
Saibamos entender essa grande ventura
E com o nosso Deus Menino renascer!

Agora no Natal, que a nossa criatura
Fuja do verbo “ter” e busque mais o “ser”!
Partamos com fervor sincero na procura
De semear o bem, sem ver quem vai colher...

Neste Natal a Paz seja o melhor presente
Que iremos receber e dar ao nosso irmão,
Mesmo que isto nos custe um sacrifício ingente!

Pois só com um intuito assim, de muita união
A inundar de amor o coração da gente,
O Menino Jesus não terá vindo em vão!

MARIA


Meu nome é flor
E ainda assinarei um sobrenome perfumado
Nos rabiscos de arabesco da papoula
Sobre o verde acobreado do papel
Meu nome é flor
Não sabe que terei os brincos de princesa entremeados
Ao Maria Rosa,
Maria Margarida,
Maria Cravo,
Maria Miosótis,
À Maria Sem Vergonha?

QUE SEJA EU,
INTEIRA,
O MEU PRESENTE DE NATAL

POEMINHA DA FRUSTRAÇÃO


Não vamos esperar mais, viu Ceci?
Passarinho é assim mesmo
Tem a liberdade toda para si
E se chega perto, é só para nos dar a ilusão
De que o temos na palma da mão
Pura ilusão;
Você não aprende, Ceci...

OLHOS


A natureza dá a cada um o que necessita
À mim deu os olhos bem miúdos;
Quanto mais sofro, tanto mais cerrados
Por certo, são proteção
Para que eu veja pouco a maldade do mundo
E não atinja esse coração
Ainda ingênuo, ainda moço,
Esperançoso do futuro.

22 December 2006

DESCULPAS


Desculpe-me se eu falar
Mas é que estou com uma preguiça de lhe encontrar
Uma leseira grande
Um esticar de braços para trás
Vontade de me alongar
E perfumar a alma de corante
E o espírito, pintar de flor
Desculpe se eu sou a manha do gato
E o sono da jibóia
Joga o seu perdão
Nos milímetros do meu esperar
Atira seu entendimento
Nas pontas do meu cabelo
Porque a vida está passando nesse momento
Barquinho de papel na enxurrada
E é preciso que eu me curve
E serenamente acompanhe o barco
Nessa vida nova de ter olhos grandes
Olhos de ver, olhos de ficar.

21 December 2006

PROMETA-ME


Prometa-me que será capaz
De me engolir inteira e ainda assim
Saciar-me os pedacinhos da maldade
Que me prometi ausentes,
Mas me foram dados;
Prometa-me que será capaz
De me dormir
De me sonhar
De me fazer rir
No meio da confusão de pragas que há no chão
Prometa-me sempre
Mesmo que não cumpra
Faça da sua palavra o cravo e a canela
Que refresca a pele
E só me alivia;
Mas não cria
A essência mais profunda.

Prometa-se ser feliz
Porque é um abuso a felicidade agora
É a imperfeita simbiose da palavra
E da falta da ação irradiada
Prometa-me, prometa-se
Prometamo-nos
Que se há vida,
Que nos enredemos em promessas
Que se não cumpridas,
Hão de nos manter lúcidos e avivados.

20 December 2006

A CASA EM QUE MORAREI


Vou escolher a casa em que morarei
Que há de ser branca
No leite da minha infância
Trazido pelas mãos de minha mãe
Há de ter janelas rústicas e baixas
Pintadas dos pavões de azul royal
Feitas da madeira da acácia
Nodosas, imperfeitas, esburacadas
Contudo, sólidas janelas
Com trancos e ferrolhos
Do cinza carbonado do passado

Há de ter uma porta feita de carvalho
Larga e alta
Generosa e afável
Rude no desenho,
Terna no cerrar,
E uma sala ampla, arejada
De móveis talhados à matéria orgânica
E o piano que terei, sentado ao lado
Da janela mais clara,
Onde possam vir as cotovias
Para escutar o canto do teclado

Há de ter plantado em terracota o lírio
O lírio azul e as hortênsias desmaiadas
Como ar que ostento sempre quando choro
De cor arroxeadas
Derrubadas em cobre avasilhado
Um par de cada lado
Da cristaleira antiga
Que foi de alguma avó
Que não a minha;
Pois eu quero o carinho estranhado
O estrangeiro amor lá instalado
Que me revisite todo dia

Os quadros me inspirarão a ter a leve insônia
Ao recordá-los quando eu me deitar
Cozinha pequena, escondendo os tachos
Pra que eu me lembre que comer não me sacia
Mas os livros, sim, dispostos todos à beira da pia
Para que eu me refaça em versos,
Que eu coma a poesia todo dia.

Na casa em que morarei
As toalhas serão brancas como o algodão
Que curou minhas feridas
Brancas como a profusão de cores
Em hélice insana
Brancas como o giz que me enveredou a vida
O ar de calma que agora eu tomo.

Todo o silêncio que busco
O cheiro de lavanda que persigo
Todo riso cristalino que preciso
Todo aconchego em que me aninho
Está na casa intensa em que morarei
Que amarei, como amei alguém
E cotidianamente lhe respirarei o ar
E onde desejarei morrer.

18 December 2006

HOJE


Hoje não escrevi
Felicidade para o poeta
Ainda é antítese do sonho
Não sei se choro de felicidade
Ou se me rio das tristezas que passaram
Que passaram hoje
No único dia que não escrevi,
E não escreverei;
Vamos dormir...

15 December 2006

CUIDE-SE


Cuide-se bem, meu bem, cuide-se bem,
Porque a sua vida está feito as rãs da minha infância
Quando eu era uma criança
Quando chovia tanto
Que habitavam as rasas poças d´água
Essa profusão de vida
E a confusão de seres para amar
E conviver
Neste seu espaço exíguo e apertado

Sua vida é cheia dessa várzea
Que é preciso cuidar prá não minar
Mas a minha, meu bem, a minha vida
É o oceano azul das praias do passado
Que vai e volta
Que recua em ondas
Mas na verdade não muda de lugar,
Não cisma, não responde,
Vive sozinha em plenitude de quietude;
Na minha vida de hoje
Não há o que cuidar.

ENROLAR BRIGADEIRO





ENROLAR BRIGADEIRO
Cecília Figueiredo

Para fazer um bom brigadeiro é preciso ter mão de criança, dedinhos finos de moça virginada e unhas de seda das orientais. Um bom brigadeiro não se faz depress; a receita é simples, mas a misturação não é.
O brigadeiro é um doce brasileiro que foi criado na década de 20; seu nome  vem do militar Eduardo Gomes que tanto em 1946 quanto 1950, foi candidato à presidência da república.Derrota duplamente frustrada,  pelo menos ganhou notoriedade nas festas brasileiras. Na mesma época a Nestlé estava introduzindo aqui no Brasil seu chocolate em pó. Por aquele tempo, devido a grande dificuldade de se obter leite fresco, ovos, amêndoas e açúcar para os doces, surgiu a ideia de se misturar leite condensado ao chocolate. Muita gente afirma que deram esse nome ao doce de forma satírica em homenagem ao militar, já que ele perdera um dos testículos num tiroteio dentro da cidade, ou seja, a piada é que o brigadeiro é um dos únicos doces brasileiros que não leva ovo na sua receita. O cajuzinho e o beijinho também, mas que graça teria homenageá-lo com estes? Ficou o brigadeiro mesmo.
Uma vez havendo comemoração de aniversário de criança e até nos dos nem tão crianças assim, é de primordial importância que se ofereça brigadeiros aos convidados, que na falta dele, por certo sairão falando que a festa não foi lá essas coisas, mesmo que haja olhos de sogra ou balas de coco em profusão. Se não tem o negrinho, não tem prazer; esta sem brigadeiro é como poesia sem dor, mais sem graça que noiva sem buquê ou padre sem batina.
Depois de ter sido levado ao fogo e de ter rebolado e remexido nos sentidos horário e anti-horário, a massa vai se refervendo de grossura e passa a querer sair da panela com aquela urgência, mostrando o fundo cada vez mais aparente, como se dissesse em desespero, “ tira-me daqui ! ”. Pronto, essa é a hora e a gente tira  depressa.
Depois na pedra fria, é hora de pegar a massa já desestressada e serena, lustrosa como a cor dos negrinhos de Portinari e  ir lambuzando a mão gostosamente de manteiga ou margarina, e já com a ponta dos dedos bem limpos ir enrolando um por um naquela  fastidiosa vontade de quem já fez tudo na vida, de uma maneira  lúdica e interminável. Não se pode ir olhando a massa que espera, senão a capacidade de enrolar fica impossível e a gente pode desistir comendo tudo ali mesmo. Então é necessário que quem vá fazer o trabalho de enrolação também se coloque de costas para a pasta atolada e vá-lhe retirando com as pontinhas dos dedos, aos pouquinhos, até ver seu trabalho terminado.
Finalmente, os granulados, esta maravilha que a ciência teima em não gastar tempo, dinheiro e pesquisa para explicar, esses ticos de êxtase que esperaram e que ansiosamente embolam-se loucos por sobre as bolas. Os pedacinhos de chocolate em formas cilíndricas são o grude impar para as bolinhas de tição que esperam atônitas pelo escorregar no prato, revirando-se de prazer e graça como se fosse um ato libidinoso e mais do que sexual. Um ato impublicável!
Uma vez já grudadas, põe-se cada brigadeiro numa forminha que pode ser colorida ou não, laminada ou não, enfeitada ou não, isso nada importará; o primordial foi feito e a missão bem cumprida.
Portanto, na horinha da festa é o momento de se oferecer esse doce a quem quer que o queira, ou seja, todo mundo, desde as gordas tias que irão dizer entre sorrisinhos bobos que será um só, até as crianças ruidosas de embocaduras diversas. Mãos agarrando, dedos conquistando, a turba por sobre o prato e  pronto, em metade de um segundo, tudo estará terminado.
Tanto trabalho para nada! Não deu para matar a vontade e nunca é suficiente para nos tirar da imensa saciedade, porque cada brigadeiro é pequeno demais para o nosso apetite de gosto e de esganação.  E mesmo se fosse gigante e hercúleo, ainda assim seria insuficiente, porque na vida da gente, o bom sempre falta e o que desprezamos, abunda.
No entanto, atente,  para se fazer um bom  brigadeiro é necessário possuir a alma contente de um simples mestre de obra, aquele nunca desanima diante de um edifício inteiro a construir, ou  ter a paciência do monge budista que não conta prazos e na falta deles, se compraz; ou seja, o tempo não existe e qualquer hora é hora.
Mas, acredite, ainda há pessoas que imaginam que o brigadeiro  já nasce pronto e enrolado dentro da lata de leite condensado, que uma vez aberta vai soltando os negrinhos serelepes para o prato.
Desconfio que minha filha, uma loirinha ainda inexperiente em questões culinárias,  pensa o mesmo.
Tatiana, sua amiga do tipo " carne e unha " faz aniversário hoje e a chamou ontem à noite para que ela a ajudasse a enrolar os brigadeiros para sua festa. Mas essa bonequinha achou que só abrir latas fosse um trabalho pequeno demais e foi dormir mais cedo.
Hoje de manhã, quando eu a indaguei sobre a feitura dos doces, ela me respondeu assim, languidamente: “Não precisou que eu fosse porque  já estavam prontos".
Minha filha deve ter  boa mão para enrolar brigadeiros; enrola a mim, enrola a Tati e vai enrolando a vida. Boa essa, Clarissa! Será que também vendem nossos sonhos em latas no supermercado?  Quem sabe meus desejos possam ser comprados e  já venham para mim embrulhadinhos para presente, com cartão e tudo me desejando assim: Parabéns, você acaba de ganhar uma vida descomplicada”!  Coisa aliás que preciso aprender com você; tem muita gente me dizendo que complico tudo.
Mas  o que fazer se acredito que a vida necessita de comprometimento? Porque para fazer brigadeiro, minha flor, se não há complicação, se não há entrega, se não nos compenetrarmos na tarefa mágica, daí o negrinho se rebela e pode não sair da panela...
Ainda em tempo, Tatiana, parabéns de novo pelo seu aniversário, você é um doce de moça!

CARTA

Meu amigo,

Você me pediu que lhe escrevesse via blog, então aqui vai o meu recadinho antes que estejamos morrendo de sono, não só para escrever, mas até para ler o que foi escrito, mesmo que seja em letras garrafais.
Não se importe com minha tristeza ou meus desavanços. Se um dia rio de tão contente, no outro desabo em casca imaginária de banana; as emoções são muitas e meu coração, descubro que não é de papel, como dizia aquela música.
Bem que a alegria tenta tomar conta de tudo, porque lá no meu intimo, devo ser uma pessoa bem alegre, mas é que a vida me deixou boquiaberta diante de tanta malvadeza e não há um único dia em que eu não repense a tremenda insanidade de terem me trazido para cá. Lógico que disfarço e nisso sou artista, porém às vezes até o disfarce cansa um pouco e eu volto a ser aquela que se entedia rapidamente com as coisas e com tudo. Até com as pessoas. Inclusive com as pessoas. Principalmente com as pessoas.
Sim, meu amigo, as pessoas me cansam; as pessoas não são maravilhosas e nem o mundo é Wonderful World. É um mundinho de carrapatos pensando que são os donos do cachorro, de gente absolutamente equivocada e triste, e nisso, claro que me incluo. Incluo você também, se me dá licença, porque tanto você como eu fazemos parte dessa selva de leões que briga com insetos. Luta desigual, meu amigo, você sabia disso antes de mim, todo mundo sabia disso antes de mim e eu descubro só agora. Como Dom Quixote e seu fiel Sancho Pança, também fui atrás dos moinhos de vento, mas encontrei só o vento, os moinhos estavam desativados e Sancho Pança me abandonou bem no meio do caminho, sem olhar pra trás, carregando a pança gorda para outras praças.
Faço de conta que o mundo é feliz jogando meus cabelos para lá e para cá, um cacoete que trago desde criança; a mulherada adora e os homens devem pensar que sou a criatura mais brejeira da cidade. Puro engano, meu amigo. Mexo nos meus cabelos como gostaria de mexer com minha vida, que ora deveria estar aqui e ora deveria estar lá. Só que minha vida não se mexe, criatura, está estática e insensível aos meus resmungos, embora eu tenha clamado às divindades por mudança, mas a minha comunicação com o paraíso deve ser falha ou devo ter me enganado enviando sinais de fumaça aos orixás quando deveria ter oferecido as prendas. Creio que eles se zangaram, porque aqui só há mudança climática na cidade, às vezes faz chuva e às vezes faz sol. Não há nada no entremeio, nem sol com chuva, nem sol na chuva, nem sol de chuva, nem chuva de sol. Uma mesmice de dar dó.
Mas não desanimarei de viver, meu grande amigo, porque não tenho propensão para suicida e muito menos desejo que me matem. Quero viver então de um jeito bem lentinho e sarcástico, observando tudo com esses olhos miúdos que me deram, cada vez mais incoerentes e fechados, contudo, bem abertos pra dentro. Abertos para dentro, primeiro para saber mais de mim, o que eu penso, o que aprendi e o que desaprendi também, porque nem eu mesma sei depois de tanta madrugada em pé, andando pela sala e decorando a cor do quadro. Depois, quero viver também para saber do mundo, do que há aqui fora, e humanamente falando, do que há de sobrenatural, porque muita gente mentirosa jura que vê e sente, mas eu francamente desconfio que não exista nada. Mentir também é parte do jogo, meu amigo, as vezes eu sei jogar, as vezes não. Burrice minha, saber jogar bem o jogo da mentira é passaporte para a comodidade. Saber jogar o jogo da verdade é ticket para o precípicio, portanto a gente tem que aprender rapido a contar as verdades mentirosas para sobreviver aqui. E sobreviver de pé, porque há muita gente que sobrevive mendigando atenção , afeto, dinheiro, calor. Assim não tem graça, é preciso sobreviver à custa da gente mesmo, do que se inventou e se acreditou que estava certo.
E portanto, meu amigo, por isso é que eu escrevo. Escrevo para jogar a frustração master para fora da minha circunferência do dia, só que o tiro sai pela culatra, e quanto mais me leio, mais acho que estou certa e que nada vai dar certo no final.
Também lhe rogo que não se importe mais com o meu pessimismo. Meu pessimismo é coisa fina, garimpado com bateia grossa e irônica para separar somente o que não presta.
Não é o pessimismo de sempre, meu amigo que me faz a companhia feito pajem, é só a constatação de que a gente se conforma com os finais das coisas quando as coisas nem bem chegaram ao seu final. A gente diz: “ Final Feliz” , mas aí é que o diabo ri escreve o fim do livro.
Então, creia em mim, meu caro amigo. Não vou morrer afogada em minhas próprias lágrimas e nem mesmo me pintarei de verde para me confundir com samambaias de plástico, porque louca ainda não sou, embora já até tenha pensado comigo mesma que seria uma tremenda de uma solução. Contudo, a minha mente lúcida e prática ainda me patrulha de fuzil em punho, e isso é o que é há de pior; viver nesse mundo idiotizado e ainda manter a lucidez. Coisa para marmanjos, meu amigo; a vida não foi feita para qualquer um.
Mas assim eu vou vivendo cada dia, pateticamente sem o respeito mínimo pelo que me cerca. Também não exijo respeito algum por mim, basta que me errem cada vez que me olharem direito e que eu seja uma espécie de fantasminha camarada, que poucos vêem e quem vê gosta. Isso me bastará.
Finalmente, lá para frente, quando estiver uma velhinha consciente e sem dentes, sem esses cabelos fartos que eu arrumo e desarrumo, quando tiver que fechar os olhos para sempre, quero mesmo é dar uma boa gargalhada final e já quase eterna, e dizer para quem quiser ouvir; ao gato siamês debaixo da minha cama, à neta chata que chegou de fora, ao genro rico que me tirou a filha, ao ex-marido que me tirou o ar:
Isso é o que chamaram de vida”? Daí, eu vou. Contente por ir. E principalmente porque já me cansei daqui.
A carta foi longa demais, meu amigo? Você dormiu?
Hum, eu também. Dormi no ponto.
Beijos e até mais.

14 December 2006

BALÃO DE GÁS


Para que serviria esse amor
Se não fosse de mentira?
Um amor de verdade eu não mereço
Mereço isso
A ilusão azul do balão de gás
Há bem pouco na minha mão
Agora lá no céu ganhando o ar
Ficou tão pouco aqui,
Nem me convenci
Que o ar não era meu
O azul nunca foi meu
Nem a mão que o segurava
Pela corda fugidia dos meus dedos
Essa mão não merecia
Segurar o que a nem tinha direito.

PLANOS


Todo mundo deveria ter um plano B
E o plano A,
Esse coitado,
Deveria ser engavetado,
Esquecido,
Ignorado;
Porque ele é mentiroso
É falso
É vil;
E se precisar,
Ataquemos de plano C
O plano C é mais honesto
E partindo do abecedário
O plano Z deverá ser o mais correto.

POEMINHA


Perdão,
Mas é que eu me cansei
Não sei se escrevo
Ou se me mando para o fim do mundo
Talvez eu fique
E nunca mais me lembre
Que vivi pouco
No muito do que eu tive.

VIVER AGORA


Bem agorinha mesmo,
Minhas mãos se revelaram curadoras
Coloquei sobre meus olhos a palma da mão direita
E eles sorriram de novo
E daí passei o ver o mundo
Com aquele sorriso chinesinho de outrora
Que cumprimenta e não chora
E fala em mandarim
Que ri com os olhos

Há a mesma chuva,
Há o mesmo chão
Mas que sentimento azul que se aproxima,
Mas que diáfano esse dia!
Eu me abri em gargalhadas
De sinos próximos
Das festas de reis
Das noites de bumbadas
Abri-me em prismas;
O mundo caducou dentro de mim
E assim ficou;
Delicioso de viver agora.

DECISÃO


Ontem, depois de um dia cheio de nervuras e chuva consistente
Decidi colocar um fim
Hoje já é diferente
Encontrei no sorriso do rapaz da padaria um contentamento
Que eu nunca vira
E no gesto do homem do sinal que acendia um cigarro
A alternativa da promessa
Promessa que não passa
Como as promessas que me fizeram um dia
Agora eu vejo o simples
E gosto do simples
Agora eu vejo o que está mais próximo
E quero o mais próximo
Agora eu sou assim
A proximidade, o gosto, a simplicidade

MILAGRE

Poema para você, Márcia.
Na falta de lhe agradecer pessoalmente, aqui vai o meu muito obrigado.
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Quem acredita em milagres me falou
De um espetacular destino
De um grito menos rancoroso que me acontecerá
De um sapato menos apertado
Que me servirá
Ou me levará
Milagres são a probabilidade das coisas,
São a ruptura da mesmice,
Do ordinário à procura do extra
Mas para mim,
Para o poeta que ainda não morreu
Nem morrerá,
Milagre é agora
São sete horas
A chuva cai
A casa está em silêncio
E o meu interior exulta de alegria
Porque existo ainda
Porque posso falar de mim
Para mim mesma
O extra do ordinário sou eu mesma
Isso é que é milagre.

13 December 2006

CANSADINHA


Hoje estou meio cansadinha de viver
Essa vidinha sem sal que eu recuperei
Que venham as emoções cascateadas
Que venham os maracás da música que eu cantava
Que venham os ritmos nos bronzes dos metais
Que venham as danças em álcool batizadas
Que venham de Minas as rudes galinhadas
Que venham naturais as piscinas de Natal
É preciso que tragam os frios congelados de Chicago
Ou que me dêem os vinhos fartos servidos por eunucos
Que venha o leite esplêndido do casamento turco
Que venham as meninas tontas dos olhos do meu par

Estou tão cansadinha de viver
Essa paisagem desenhada a cana
Esse cheiro de terra disputando a lama
E essa chuva teimosa, cansativa e grossa
Essa vidinha morna,
Vidinha de acordar, puxar o ar
E ir dormir sem nada a comentar
Com risco de viver cem anos
Meu Deus, como a vida aqui é perigosa!

PROMESSA


Uma vez me prometeram
Presença e companhia
Tive solidão e desprazer
Agora prometo que a distância
O tempo azarado em que me dou
Traga-lhe o aziago dia que passou.

SUCURI

Se você, meu caro leitor, imaginou que eu fosse estampar aqui uma bela imagem de sucuri, errou. Tenho-lhe tanto medo e asco, que a simples idéia de vê-la pendurada me tiraria o sono e me faria tremer durante o dia que passasse. Fica sem a foto, mas permanece o medo e o respeito.
Sorry.
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Se sucuri não tem veneno
Por que aquela valentia toda
Aquele olhar parado de quem está com tudo
O tamanho exagerado que impõe respeito?
Ah, é bem verdade
A atitude lhe compensa o defeito.

12 December 2006

O MELHOR DA FESTA


Dizem que o melhor da festa é esperar por ela.
No meu caso, a festa começou, rolou, já acabou e ainda nem vi se vou.

ESPERAR

Ah, meu Pé de Pitanga, se eu pudesse lhe dizer uma coisa séria hoje, eu lhe diria que a minha paciência hoje chegou ao seu final . Se tudo tem um começo, tem um um meio e tem um fim, o fim agora é esse. Não espero mais nada e também não espero mais ninguém. Amanhã amanhecerei sem o relógio de pulso enorme que carreguei até agora à exaustão e se em algum momento eu me lembrar que o sino da igreja também marca as horas, arrancarei em fúria de touro bravo, o sino, e se houver um relógio no alto da torre, destruirei os ponteiros daquele relógio, o relógio, a igreja, a praça, o pároco, as beatas, os mendigos que se postam mendigando à porta, apenas para que não haja mais indício de tempo ou de espera que se encerrou agora, neste exato momento de decisão.
Viver, agora sim, esperar mais, não!

E por favor, não me espere; nem passe amanhã!
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Esperar é o diabo
Nascemos esperando a hora de nascer
E a hora de nascer nunca é acertada
Esperamos para crescer
E uma vez crescendo,
Esperamos alcançar as uvas verdes
Uma hora ou outra tê-las conquistado
Nesse contínuo levantar de braços
Nessa pesarosa e única verdade

Amadurecer seria não esperar mais
Esperamos a morte
Nesse jeito duvidoso e lento de viver
E esperamos sentados
À beira do nosso ninho
E lamentando o tempo que já foi desperdiçado



Como eu agora,
Que espero alguém
Que nunca se atrasa
Mas que nem sabe se vem
Porque também espera que sua vida passe

A espera não foi feita pelos deuses
Deuses não anseiam, não resmungam
Não batem o pé à custa da vontade;
Deuses mandam e desmandam
E fazem o tempo da frente
Correr pro tempo de trás
Deuses são os soberanos,
E eu?
Eu devo ser a filha do pecado.

ÓLEO SOBRE TELA

"O elo infinito do quadro negro de tela, retirado da sua moldura, soltou livre o drama dos seus traços"... Picasso, 1937.



Depois de ter lhe pensado um pouco
Resolvo incorporar em mim a alma de Picasso
E pintar-lhe assim num óleo sobre tela
Com as pinceladas vigorosas e nervosas
De todas as deformações que eu trago

Se eu termino meu trabalho
Com as tintas caprichosas da viscosidade
Vejo-lhe agora desbotando sobre a lona
Branco que insiste na sua brancura
Cor que resiste em permanecer no pano

O verde que lhe pintei tornou-se lodo
E a camisa azul passou a ter a cor da estrada
Presença fugidia,
Poeirenta e crua terracota

Não há cor que lhe imprima que perdure
Sua estampa gasosa ainda mora longe
Numa casa pintada atrás do meu painel

Assim, não há como lhe captar a intimidade
Seu ser é escapadio e breve
Corre e recorre;
Sua distância é inconquistada
Embora possa me parecer assim tão perto.


10 December 2006

O ALMISCAREIRO




Hoje assisti na TV fechada um programa sobre o almiscareiro, uma espécie de corça ou veado que está à beira da extinção. É dele que se extrai o almíscar, um subproduto que se localiza dentro de uma glândula que está posicionada logo abaixo do pênis do almiscareiro, apenas no macho. Na sua forma bruta, o almíscar é um agente poderoso na atração sexual do acasalamento, já que seu odor tem uma penetração intensa e duradoura por todo o derredor onde ele esteja e sua produção se dá de cinco ou seis vezes por ano. Subtraído da glândula, o almíscar parece um punhado de café moído, porém precioso e desde a época renascentista, quando os mercadores já se enriqueciam desse ouro em pó, eis que ele abria as portas das realezas, que não poupavam esforços para buscar o animal onde estivesse, ou seja, no alto das montanhas, livre. Não é necessário sacrificar o animal para a retirada do almíscar. Basta imobilizá-lo, apertar-lhe a glândula que se abre facilmente e retirar de lá de dentro, com uma pequena colher, o conteúdo. No entanto, no passado, era usado o abate, sempre cruel, já que o bicho possui uma capacidade fantástica de fuga com saltos ornamentais e grande disposição na corrida. O almiscareiro vive originariamente na China, onde atualmente é criado em cativeiro para garantir o abastecimento da indústria coméstica não só local, mas de todo o mundo, especialmente Hong Kong e Europa Ocidental.. O perfume Chanel no. 5, por exemplo, lançado por Coco Chanel nos anos 60, famoso por seu uso por celebridades tais como Marilyn Monroe, tem sua base no almíscar e mulheres de todo mundo ainda se rendem ao encanto de algumas gotas que podem jurar ser afrodisíacas. Não são, apenas exalam o forte cheiro que recendem por anos numa sala fechada.
Embora o almíscar se encontre somente na versão macho do animal, há de se supor que as fêmeas, assim como as humanas também se rendam ao perfume inebriante e apelativo que vem do pênis do animal, ocasionando nelas um magnetismo que se finaliza na cópula para garantia da sobrevivência da espécie. Ou seja, fêmeas são e sempre serão atraidas por perfume, quer sejam sinteticos ou de origem animal. De animal deve ser melhor, como provou a ciência da indústria em declarar que nada até agora substitui com excelência a aplicação do almíscar.
O documentário ainda tece considerações sobre a vida do animal em cativeiro, na sua condição selvagem agora capturada entre muros altos, os saltos espetaculares que chegam a 8 metros de distância, a complexidade de sua alimentação, antes na liberdade, agora com combinações excêntricas e vastas para atender a qualidade do produto: o almíscar bruto, o extrato para a indústria a peso de ouro.
Enquanto assistia ao programa me foi inevitável comparar a figura do almiscareiro com a figura da mulher no mundo ocidental.
Em nós, mulheres, não há glândulas próximas ao aparelho sexual que atraiam o macho, mas é como se a própria mulher, inteira, fosse o almíscar desejado pelo mundo masculino e conseqüentemente, pela indústria da moda e do cosmético.
Houve uma revolução sexual nos anos 60 e a mulher comospolita ainda se encontra capturada e presa ao mundo conveniente e ingrato da modelagem e da venda de sua imagem, na atração nem sempre sexual, mas comercial em apelar para a venda de produtos e da veiculação de idéias através de nós.
Andamos como Bunchens, sorrimos como Arósio, desejamos ter cabelos dourados como Beyonce, temos destinações de Angelina Jolie e precisamos estampar corpos de Juliana Paes. O almíscar moderno e simples é esse; não houve libertação e sim um aprisionamento cada vez maior de fêmeas nessa compulsão desmedida e insatisfatória de molduras e modelos que o mundo moderno nos impõe.

Somos assim espécies de almiscareiros, presas em nosso mundo cercado de moda e de vontades externas, produzindo sexo e produzindo imagem, vendendo e comprando, num círculo de milhões de dólares feito os muros altos da China que cativam os animais. No final, somos tão animais como eles, servindo uma sociedade de saciedade de produção.
Vi as carinhas dos almiscareiros. Eles têm uns olhinhos doces, um arzinho brincalhão, mas não estão brincando. Estão produzindo.
Vi a minha própria carinha hoje no espelho pela manhã. Tinha uma ruguinha a mais no canto dos olhos e uma pele sem viço.
Temo acabar como o animalzinho que decidiu envelhecer e sumiram com ele. Na China é assim, se não produz, morre.
Em outros lugares do mundo também é assim, se você não produz, somem com você.
Comigo ainda há uma remota chance de que sumam comigo só porque o tempo passou e a indústria da moda já nao me chama tanto. É porque escrevo. Quem sabe me poupam para registrar a ascensão e queda da mulher ocidental na sua juventude e no seu outono.
Pode me render dinheiro, e no mundo ocidental, assim como no mundo oriental, fazer dinheiro é produzir.
O mundo oriental me decepcionou; imaginei-o mais humano e mais enraizado em ética. Mas o almiscareiro não, não me decepcionou nem me amargurou; nunca supus que ele existisse, mas foi uma bela descoberta.
Hoje à noite, antes de dormir, quando eu apagar a luz, vou gostar de imaginar um almiscareirozinho na China produzindo perfume; me sentirei mais contente. Porque ainda há beleza no mundo, mas não nesse mundo capitalista e nem tão capitalsita.

Para mim, a beleza do mundo ficou retida dentro da glândula de um animal selvagem, que sem saber, atrai e seduz, não porque tenha vocabulário perfeito, nem porque freqüentasse Harvard, ganhasse muito na Bolsa de Valores ou então se tornasse artesão de jóias.
A beleza do mundo está na sedução de um almiscareiro. Porque ele é belo. Porque ele é simples. Porque ele não precisa de artifícios. E principalmente porque ele não sabe de seu poder e de sua atração. E porque tem como acessório uma bolsinha escondida. E mais nada. E como seduz!





MEU OLHAR




Já que você esta aí, com toda a paciência, depois de ter transposto o clique inicial de acesso ao Pé de Pitanga, vou lhe confessar um episódio de domingo de manhã que estou vivendo agora. Acabei de voltar do supermercado; fui cedo para não encontrar filas e voltar cedo para ter tempo de fazer o que mais gosto: nada, a não ser olhar sem pressa o tempo chuvoso lá fora, escutar as músicas de sempre que adoro, mexer no computador, o que nada adiciona à minha vida nem me enobrece. Mas a nobreza de alma já não faz mais parte da minha personalidade de hoje. Houve um tempo em que era essencial que eu lesse tudo avidamente, compreendesse rapidamente os fenômenos, buscasse soluções instantâneas e agisse sem pestanejar.
Hoje não, é urgente que eu refaça o caminho inverso; ler somente o que me interesse, compreender que os fenômenos existirão com ou sem a minha compreensão, que as soluções virão no tempo certo se eu cumprir a lei do mínimo esforço apenas mexendo a minha mão e as ações terão que ser lentas para cumprir a parábola da vida, senão, que graça haveria em viver?
Gosto de mim assim, aprecio a minha serenidade de hoje e preservo à unha o que conquistei; meu andar vagaroso, minha cabeça o tempo todo distraída, meu meio sorriso enquanto penso nas coisas que são minhas e que também não são, minha capacidade de errar e reconhecer meu erro dando gargalhadas de mim mesma.
Agora mesmo, no supermercado, uma conversa entre marido e mulher me chamou a atenção. Ele falava que precisavam de sabonetes, ela dizia que não, olhares do frio da espada se cruzaram entre eles, uma briga feroz de cachorro grande poderia se dar ali mesmo, os sabonetes suspensos na mão do marido, um em cada mão, a esposa resoluta em não levá-los, e para tanto, destilando uma intenção de bote de sucuri enquanto os olhos miravam e hipnotizavam o alvo, ou seja, o marido cuidadoso e necessitado de sabonetes. Ganhou quem lutou mais; a mulherzinha sem graça, de cabelo pintado de um loiro sujo, óculos de grau e vestido marrom abaixo dos joelhos. Sabonetes de volta à gôndola, rendeu-se o sujeito diante de tanta potência e valentia. Ganha quem tem mais armas e quem confia em sua própria força.
Comigo nunca foi assim e se foi um dia, já me esqueci. Levar sabonetes ou não levá-los para casa não tem a menor importância para mim, esquecer de comprar o produto que me levou ao supermercado depois de ter enchido o carrinho, chegar em casa e descobrir o ato falho, isso sim me faz chegar às raias do contentamento. Digo para mim mesma que sou especial e única, e me conformando, peço ao primeiro desavisado que se aproxima que vá cumprir o que deixei, sempre pedindo perdão com graça e zelo. Se o solicitado vai ou não vai, também isso não me faz despencar do humor tratado a pão-de-ló que eu há anos guardo e preservo. Ficar sem sabonetes não me fará mais nobre, nem mais suja, nem mais santa. Me fará ficar sem tomar o banho de agora que adiarei para qualquer hora do dia, sem tristezas ou lamentações, quando finalmente tiver o sabonete nas mãos. Factual, só isso.
Nunca tive um olhar hipnotizador e mágico, daqueles que conseguem tudo. Olhar de sucuri dentro dos meus olhos seria um estrangeiro em terras brasileiras, um peixe fora d´agua, a alegria no luto, um impropério.
Não, meu olhar ainda é vazado, vê por entre as coisas, atravessa e busca o outro lado. Consigo alguma coisa com isso? Acho que não, nem quero conseguir, me conseguir em mim é hoje o que me basta.
Mas gosto de ser assim, e gosto mesmo, meu olhar é igual ao bumerangue que tive no passado. Eu o jogo lá longe, ele volta pra mim, aqui dentro da íris dos meus olhos, só que me traz de volta, assim, serena, contente, um olhar amigo de mim.
Se tivesse um olhar animal, este seria do cachorro de rua que encontrei ontem à porta do edifício. Olhar meu, que eu vi e reconheci com alegria, que não pede e tudo aceita. Um olhar respeitado, respeitador e descomprometido, que busca sossego e nada quer. Só quer olhar.

SE UM DIA


Se um dia eu me encontrar frente a frente com o Criador, vou querer perguntar porque Ele trabalha tão tarde na vida das pessoas. Talvez Ele me compreenda e me dê uma longa explicação sobre a relação direta entre o ganhar e o perder, o conquistar e ser derrotado, servir e ser servido.
Talvez não, talvez me diga asperamente que foi tudo brincadeira, que ainda existe o malhar de Judas pra lá onde Ele mora e que eu fui a escolhida, não a bater, mas a ser açoitada e a nem sempre saber porque. Lamentará por ter sido eu, mas não se lamentará demais; me dará um sorriso amarelo divino e me dirá meneando a cabeça: “Torça para que haja reencarnação”.

09 December 2006

TUDO O QUE EU AMO EU JOGO FORA


Tudo o que amo eu jogo fora
Joguei a rosa seca que guardava o livro
Joguei o anel de pedra azul que me dava sorte
E o sapato cor de rosa do meu baile
E atirei pra longe a foto desbotada de um amor
O amor macio e leve dessa alma
Retirei de mim também a minha crença
A crença boa e forte no meu santo nome
Fiquei com a parte rota da maçã do amor
Fiquei com a sombra torta

As coisas que eu amei
Que amo ainda
Ficaram desvinculadas do meu dia a dia
Não me pertencem mais,
Porque eu sei que nunca foram minhas.

PARA O QUE HÁ DE VIR



Para o que há de vir
Não haverá mais as flores frescas que ofereci
Nem mais a cantiga que eu cantava
E que era alegre
E que eu sabia de cor, de trás
E salteado
Não haverá mais a memória dos poemas
Nem a singeleza dos meus atos
Que tive então,
Num tempo preso à minha juventude
Juventude de leveza
De riso e música
Do devanear cantado

Para o que há de vir
Não haverá mais a pele fresca que ofereci
Nem mais o meu olhar cintilante
Que era a pura luz retrátil
E amendoado
Nem haverá mais o observar curioso dos meus passos
Que tive então
Num tempo preso à minha mocidade

Ao que há de vir
Haverá a arrebentação das lágrimas
A fúria, os olhos desbotados
De choro e mágoa;
Para esse que haverá de vir
Será necessário um amor velado
E um amor por mim
Amor pela minha lástima
Amor pelo que vivi
E ainda assim, amor dobrado.

DESEJO


No desejar profundo que me encontro
Não cabem mais as minhas palavras
Nem o meu sentimento de assombração
Sombra infeliz que me espelhava
Enfeite de mentira que me adornava
E as carícias noturnas,
Nem tão leves como eu desejava
Desejo mais
Desejo que o profundo dos pacíficos se exponham
E que eu veja a aurora boreal
Nunca mais sombria
Nunca mais noturna.

Desejo a vida
Em raios displicentes sobre o meu quintal
E eu, paralisada, estremecida e inerte
A desejar, a desejar
E a receber o desejado
Fruto da minha imaginação,
Perfeita ponte combinada
Entre o que desejei um dia
E o que desejo então.

08 December 2006

VOU DORMIR


Vou dormir
As cigarras se foram
As trepadeiras nem estremecem
E a avenida lá em baixo está que é puro ar
Sem carro e sem gente
Lá dentro de mim tem um tiquinho
De ilusão que amanhã amanhecerá
De um dia mais rico do que hoje
Um dia típico de poeta arrebentado
Se bem sofreu hoje,
Bem vivido será o despertar
Preciso de tão pouco
E o pouco que tive me deu prazer
Os espelhos daqui estão quebrados
Não vejo mais meu rosto amarrotado
Perdi a ponta da meada
É hora de dormir
Amanhã desperto,
Renovada.

07 December 2006

ESTOU DE MAL


Daqui a pouco você vem
Com uma carinha de santo
Com jeitinho de moleque
E eu lhe direi na hora
Se não veio quando eu quis
Não venha me ver agora
Estar de mal de poeta
É estar de mal pra sempre
Até que o gale cante
A vaca forneça o leite
Meu riso solto se lance
Sobre o seu sorriso quente.

DETESTO


Detesto gente morna
Detesto o meio ser
Aquele que diz e que não diz
Que sente mas não sente
Que busca e nunca acha
Que não acredita
E na fé não põe sua medida

Detesto gente insalubre
Vestida de capa e guarda chuva
De terno e bom ar
Detesto, detesto
Não sei porque me prendi assim
A gente de má tempera
Deve ser porque sou insensata
Detesto e guardo
O que eu amo eu jogo fora.

QUINTA FEIRA


Hoje é quinta feira morna
O que é que tem?
Quinta feira devia ser o dia de prestar culto aos santos
Embelezar um pouco a alma
Santificar-se de fé
E revolver a alma à busca de alívio
Quinta feira devia ser o dia de se visitar o santuário intimo
Desfiar as novenas e decorar os cânticos dos cânticos
Falar umas rezas em Latim
Rezar o credo de hora em hora
Falar com as divindades,
E não só falar-lhes, mas ouvir-lhes
No santo discurso que beneficia e me lava
Que me reconstrói e me acalma

Mas é morna a quinta
É morna, é desvalida;
Não é minha,
É estúpida e parva;
É uma sensação de perda
E descoragem
É inútil,
Uma quinta feira onde os santos
Rebelaram-se todos e se foram, mortos
Mortos de medo
Medo de mim.

04 December 2006

FESTA DE NATAL


Longe de mim as festas de Natal
Tudo o que tenho hoje são os guizos do passado
Que brilharam, brilharam mais dentro de mim do que lá fora
Tenho saudades sim
Quando o ar se mantinha engaloado
As cores vibravam
E o aroma que vinha lá de fora não era frio,
Como é agora;
Hoje há somente um pinho desbotado
Nenhum som,
Vícios de alegria
Nem a fantasia que eu imaginava.

03 December 2006

PRISÃO


Por que não adoeço de amor
Se grandes amores fazem os outros se jogarem na cama
Armar um berreiro
E desejar a pessoa amada a custa de prisão?
È porque bem agora eu me lembrei da minha solidão
Que me joga na cama
Que me tira a explosão
E que me aprisiona aqui,
Quietinha, quietinha
Uma prisão gostosa, amena, doce
Prisão que eu mesma fiz
Onde a poesia é o carcereiro que me guarda
E as palavras, essas são
As algemas que vesti.