10 December 2006
O ALMISCAREIRO
Hoje assisti na TV fechada um programa sobre o almiscareiro, uma espécie de corça ou veado que está à beira da extinção. É dele que se extrai o almíscar, um subproduto que se localiza dentro de uma glândula que está posicionada logo abaixo do pênis do almiscareiro, apenas no macho. Na sua forma bruta, o almíscar é um agente poderoso na atração sexual do acasalamento, já que seu odor tem uma penetração intensa e duradoura por todo o derredor onde ele esteja e sua produção se dá de cinco ou seis vezes por ano. Subtraído da glândula, o almíscar parece um punhado de café moído, porém precioso e desde a época renascentista, quando os mercadores já se enriqueciam desse ouro em pó, eis que ele abria as portas das realezas, que não poupavam esforços para buscar o animal onde estivesse, ou seja, no alto das montanhas, livre. Não é necessário sacrificar o animal para a retirada do almíscar. Basta imobilizá-lo, apertar-lhe a glândula que se abre facilmente e retirar de lá de dentro, com uma pequena colher, o conteúdo. No entanto, no passado, era usado o abate, sempre cruel, já que o bicho possui uma capacidade fantástica de fuga com saltos ornamentais e grande disposição na corrida. O almiscareiro vive originariamente na China, onde atualmente é criado em cativeiro para garantir o abastecimento da indústria coméstica não só local, mas de todo o mundo, especialmente Hong Kong e Europa Ocidental.. O perfume Chanel no. 5, por exemplo, lançado por Coco Chanel nos anos 60, famoso por seu uso por celebridades tais como Marilyn Monroe, tem sua base no almíscar e mulheres de todo mundo ainda se rendem ao encanto de algumas gotas que podem jurar ser afrodisíacas. Não são, apenas exalam o forte cheiro que recendem por anos numa sala fechada.
Embora o almíscar se encontre somente na versão macho do animal, há de se supor que as fêmeas, assim como as humanas também se rendam ao perfume inebriante e apelativo que vem do pênis do animal, ocasionando nelas um magnetismo que se finaliza na cópula para garantia da sobrevivência da espécie. Ou seja, fêmeas são e sempre serão atraidas por perfume, quer sejam sinteticos ou de origem animal. De animal deve ser melhor, como provou a ciência da indústria em declarar que nada até agora substitui com excelência a aplicação do almíscar.
O documentário ainda tece considerações sobre a vida do animal em cativeiro, na sua condição selvagem agora capturada entre muros altos, os saltos espetaculares que chegam a 8 metros de distância, a complexidade de sua alimentação, antes na liberdade, agora com combinações excêntricas e vastas para atender a qualidade do produto: o almíscar bruto, o extrato para a indústria a peso de ouro.
Enquanto assistia ao programa me foi inevitável comparar a figura do almiscareiro com a figura da mulher no mundo ocidental.
Em nós, mulheres, não há glândulas próximas ao aparelho sexual que atraiam o macho, mas é como se a própria mulher, inteira, fosse o almíscar desejado pelo mundo masculino e conseqüentemente, pela indústria da moda e do cosmético.
Houve uma revolução sexual nos anos 60 e a mulher comospolita ainda se encontra capturada e presa ao mundo conveniente e ingrato da modelagem e da venda de sua imagem, na atração nem sempre sexual, mas comercial em apelar para a venda de produtos e da veiculação de idéias através de nós.
Andamos como Bunchens, sorrimos como Arósio, desejamos ter cabelos dourados como Beyonce, temos destinações de Angelina Jolie e precisamos estampar corpos de Juliana Paes. O almíscar moderno e simples é esse; não houve libertação e sim um aprisionamento cada vez maior de fêmeas nessa compulsão desmedida e insatisfatória de molduras e modelos que o mundo moderno nos impõe.
Somos assim espécies de almiscareiros, presas em nosso mundo cercado de moda e de vontades externas, produzindo sexo e produzindo imagem, vendendo e comprando, num círculo de milhões de dólares feito os muros altos da China que cativam os animais. No final, somos tão animais como eles, servindo uma sociedade de saciedade de produção.
Vi as carinhas dos almiscareiros. Eles têm uns olhinhos doces, um arzinho brincalhão, mas não estão brincando. Estão produzindo.
Vi a minha própria carinha hoje no espelho pela manhã. Tinha uma ruguinha a mais no canto dos olhos e uma pele sem viço.
Temo acabar como o animalzinho que decidiu envelhecer e sumiram com ele. Na China é assim, se não produz, morre.
Em outros lugares do mundo também é assim, se você não produz, somem com você.
Comigo ainda há uma remota chance de que sumam comigo só porque o tempo passou e a indústria da moda já nao me chama tanto. É porque escrevo. Quem sabe me poupam para registrar a ascensão e queda da mulher ocidental na sua juventude e no seu outono.
Pode me render dinheiro, e no mundo ocidental, assim como no mundo oriental, fazer dinheiro é produzir.
O mundo oriental me decepcionou; imaginei-o mais humano e mais enraizado em ética. Mas o almiscareiro não, não me decepcionou nem me amargurou; nunca supus que ele existisse, mas foi uma bela descoberta.
Hoje à noite, antes de dormir, quando eu apagar a luz, vou gostar de imaginar um almiscareirozinho na China produzindo perfume; me sentirei mais contente. Porque ainda há beleza no mundo, mas não nesse mundo capitalista e nem tão capitalsita.
Para mim, a beleza do mundo ficou retida dentro da glândula de um animal selvagem, que sem saber, atrai e seduz, não porque tenha vocabulário perfeito, nem porque freqüentasse Harvard, ganhasse muito na Bolsa de Valores ou então se tornasse artesão de jóias.
A beleza do mundo está na sedução de um almiscareiro. Porque ele é belo. Porque ele é simples. Porque ele não precisa de artifícios. E principalmente porque ele não sabe de seu poder e de sua atração. E porque tem como acessório uma bolsinha escondida. E mais nada. E como seduz!
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