26 November 2008

MEDO


Assoma-me um medo agora de um galo de quintal
ante a perspectiva da chuva na madrugada,
um pavor das tintas caindo do lençol,
um vislumbre do futuro onde serei escrava de jó da sorte
um terror de que somente as minhas mãos envelheçam
e que eu só envelheça, sozinha, internamente...

Se eu tivesse um bem, chamaria o meu bem de meu bem
e me acobertaria, presa em seu ombro qual a libélula do meu casaco
Mas o meu bem é a libélula desconsiderada que voou
árvore que secou, fruto que não madurou
partícula de átomo que não detonou...

Para a minha voz de hoje, um sopro por entre os dentes,
para o meu amor, um frasco de perfume pelo meio
para o meu suspiro de agora, um longo descontentamento
e para o meu medo, um choro por dentro.




ALEGORIA


Hoje fiz careta para aquela que vi no espelho
Não me parecia com ninguém que eu conhecesse bem
Hoje me desconheci em tudo
porque não alavanquei aquilo que era para mim um tesouro
Levantei-me, tomei um café adoçado às custas artificiais
me vesti como se vestem as camareiras dos hotéis;
remota e impecável, e segui para onde estou...
Falta-me a alegria,
mas a alegria é alegoria
e a alegoria é opcional.

14 November 2008

MARIA CECÍLIA VENCEDORA


" Vencedor é todo aquele que, ao contemplar o pôr-do-sol, não precisa recorrer, covardemente, ao emprego do 'futuro do pretérito'. Ex: Hoje eu 'poderia' ter feito mais pelos meus sonhos."
Quem muito se deu, muito conquistou..
Parabens, Ci!


MAQUININHA DE FAZER ARTE


Todo artista tem dentro de si uma maquininha de invenção que fica girando e produzindo idéias. As idéias brotam em forma de música, pintura ou poesia; cada arte tem seu jeito próprio de brotar, igual às flores diversas.

Um dia a maquininha pára de rodar. Não foi porque tenha quebrado, ou porque o artista tenha se cansado. A maquininha pára, de forma inteligente, para que o artista não se afunde em mirabolantes frases, tintas, melodias... e se acabe.

Quando o artista está pronto, a arte reaparece.



12 November 2008

TRINDADE


Queria começar uma poesia hoje
e gostaria que ela nunca se acabasse
Que me acompanhasse no que ainda me resta viver
e que me velasse, insone, à hora da minha partida
Seria ela um consolo e uma amiga que nunca tive
um braço que me faltou na condução da dança
Seria meus pés, tortos de vergonha
quando enrubesci no momento da mais alta vergonha
e seria também a música que me faz falta quando estou dispersa,
entre o trabalho e a iniciativa do risco do trabalho

Queria começar uma poesia hoje
que me fosse o brinde da trindade,
única em mim, e farta de verdade:
música, sentido e saudade.


10 November 2008

PLENA


Todos os negrinhos da cidade devem estar sem camisa e tomando cerveja
em copos de cidra, baixos, engordurados
E comem com negligência um pedaço de carne dura
que gruda em seus dentes muito brancos...
Eu estou aqui à espera de anoitecer
Meus dedos estão pálidos e minha pele também é pálida
Nem tanto sobrou de hoje, já começo a querer viver o amanhã.
Meus dentes estão luzidios, posto que eu os preservei, intactos.

Livre é que não sou, pensei que fosse,
mas meu lacre é de afeto
e lacre de afeto prende mais que carne no dente
Feliz é que não sou,
não como o que gosto e nem bebo o que eu mereceria
A alegria é coisa pouca,
mas coisa pouca nunca foi prá mim
Quero o que é grande e o que dá trabalho
O trabalho agora é esse,
não refastelar-me, não relar-me, não gozar-me
só meditar sobre o prazer de ser um negro de dentes alvos
carne no dente, cerveja com gordura,
um dia de cada vez, uma calma desplanejada.
um vício enfeitiçante, uns pecados ardidos de bons,
uns palavrões arremetidos de chofre,
umas violências abertas, sem recato,
viver assim seria bom...
com esse calor que faz então, seria pleno
eu seria plena,
Plena eu não sou.


06 November 2008

POEMA DE FAZER SUPERMERCADO


Amanhã farei supermercado
Laranjas e limões, enfartem-se, que lá vou eu!
Apalparei tudo que estiver debaixo do meu olho;
perfurarei os mamões até que meus dedos estejam lambuzados
daquele leite viscoso de casca verde
e que me alimente como um seio de mãe

Acho a coisa mais estúpida comer e mastigar
O homem há muito já expandiu a estratosfera
e ainda precisamos colocar comida à boca para enrijecer os músculos
e engrossar o sangue

O ato de comer, na sua primitiva coragem
é a cena humilhante de nossa fraqueza e pouca alma
Se eu pudesse, não comeria,
e se eu não comesse, também não podia

Quando como, sou animal de sela
e quando escrevo, sou estrela.




AMOR DOADO


A quem queiramos bem
não devemos confiar seu rumo à um destino
Tratemos com virtude a quem queiramos bem
façamos sopas grossas, cheirando vagarosas, à galinhas gordas
a fim de esquentar o peito de quem queiramos bem;
teçamos mimos em miniaturas - nuvenzinhas, boizinhos no pasto,
argolinhas de fazer um Natal,
para que os olhos de quem queiramos bem se abrilhantem e vivam mais
E adulteremos as certidões que marquem o tempo
com borracha impermeável que deve existir na Patagônia ;
para que façamos truques com o tempo
e por aqui nos estiquemos mais,
tratando com respeito o que nos diz respeito;
Sendo que o respeito por quem queiramos bem
é o amor doado a quem nos trouxe vida
Tratemos pois, a quem amamos, com a alegria de quem serve
e uma compaixão de quem já olhou tudo e
e olhar de novo já não se necessita mais ...

O amor presenteado é a pródiga paixão da natureza;
se este nos recebe, retorna duplamente
e se porventura, num átimo de loucura
se não nos recebesse,
contrariando as leis da natureza,
no amor doado,
este nasceria.