29 September 2008

PARA MUDAR O MUNDO


Para mudar o mundo, começa por mudar o teu vocabulário
Não digas mais, por exemplo, "venha, tomemos juntos um café";
Diga que iremos nos abstrair do mundo sôfrego, ingrato
mediante a fragilidade das coisas
e sobre a efemeridade da tua própria vida
igualmente sôfrega e igualmente efêmera
e me falas da tua simplicidade máxima
enquanto sorves um café.

Teu vocabulário necessita da tua vontade verbal;
precisa ter a descoberta inesgotável e férrea
da criação dos novos sons
e de novos códigos que te restaurem
o que te foi um dia uma visão

Para falar das tuas tristezas, usa verbos impensáveis
como "espraiar"
(haveria verbo mais etéreo do que espraiar a dor,
deixá-la pulsante, dentro do ritmo de onda,
até que cesse sua força, esparramando-se, frouxa,
a lamber alguma tábua de ar?)

E ainda sobre as tuas necessidades de amor...
ressurja com criações sutis e desaqueixosas
falando de morte e de renascimento
que é o que somos,
e é só o que deixaremos.

Por fim, quando tiveres descoberto
que a palavra transforma
e que a palavra também desmonta
os reinos, e os reis que os criou
põe fim ao teu sofrimento de observar a rigidez do acaso...
Se por tua vez, conformadamente, te modificares
terás modificado o que te assoberbou.

28 September 2008

POEMA DO CANTO NOVO


Se um sentimento está dissociado da razão
então não houvera razão
Mil motivos eu tivesse para desacreditar
Em mil folhas meu destino desfolhou-se
Nunca acreditei em patéticos duendes
tampouco acredito em força de velas
No entanto, numa tarde como outra qualquer
Um destino novo,
um caminho novo
um canto novo
redesenharam a parede de aço
que eu supunha levantar
Do aço, gelatinou-se um riso
e da parede, a liberdade do meu juízo
que hoje nem canta, nem apavora
Crê no que é verdade
e desacredita no que já foi.

17 September 2008

POEMA DOS AMIGOS




Pedi-te um amigo e deste-me uma legião de seres
que nunca sabiam o bem que me fôra feito
Se eu sorria, sorriam-me,
e se eu chorasse, choravam-me duplamente
Uma existência como a minha
que fôra feita do sal da praia
bem que merecia ternuras ocasionais
Pois que me dissestes que eu não teria amigos formais
porquanto me destes o sentimento de pertencer ao mundo
Se cá estou, regozijo-me na comunhão
quando eu não estava, escurecia-me a visão
por me saber desprendida
Vejo-me no outro e no vizinho de porta
E se me destes o afeto
por ele enredo o fio da meada
Meus amigos são gente como tu
Muitas vezes não os vejo, mas aqui estão.


[ Friedrich Nietzsche ]


"Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro.
E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti."

11 September 2008

POEMA DA VERDADE


Porque eu sou suave
e porque sou tinhosa
Hão de resplandecer por sobre mim
certas auroras promissórias...
Viver é assim, à espera do prodígio
Os dias passam, cheios de calosidade
os meses se arrastam porquanto haja um calendário,
os aniversários se abarrotam de suspeitas de maturidade
que eu me deixei acumular.
Se sou feliz, ainda não certifiquei meu óbito de luto em cartório
nem recebi ainda um atestado de leviandade
Talvez seja essa a felicidade
um "statu quo ante bellum"
o espaço em branco entre a largueza
e as angústias de nascença que me designaram.
Tenho presságios de alegria
no entanto, essa alegria,
pouca alegria, é verdade
espoca e morre, em cima da velocidade
do tempo, da falta, do asco.


10 September 2008

INIMIGA DOR


Senhor, cuida de mim e ajuda-me a amar o inimigo
que me fez um laço forte por volta da minha cabeça
e bebeu da minha alegria
por de dentro da minha esperança...
Ajuda-me a amar a quem foi depositário do meu único tesouro
e da minha única aliança
Ajuda-me a amar o inimigo como se fosse o mais entesourado amigo,
ajuda-me a perdoá-lo como se eu perdoasse ao meu espelho
e ajuda-me a esquecê-lo como eu já deveria tê-lo esquecido
Ajuda-me, mas não me ajuda em vão
e restaura-me as aparas, sendo que sou fraca, Senhor
e enfraquece-me as vísceras da mágoa, posto que são fortes
e finalmente,
dá-me a vida esplêndida que eu merecia ter almejado
e que me esqueci de buscar nas confusões do acerto
e me esqueci de saber de mim,
do outro, de um possível amanhã,
das samambaias que aqui tenho, descuidadas...
Pois que não há vida que me aguarde
nem vida que me encare
se não houver de um inimigo, a dor dilacerada
e dentro da dor, se fôra amor,
o inimigo amor.

03 September 2008

NOTIFICAÇÃO


Meu coração é o trajeto da bala

Voa, voa, em direção ao mártir

Se encontra o objeto, mata

E se resvala, marca.