10 December 2006

MEU OLHAR




Já que você esta aí, com toda a paciência, depois de ter transposto o clique inicial de acesso ao Pé de Pitanga, vou lhe confessar um episódio de domingo de manhã que estou vivendo agora. Acabei de voltar do supermercado; fui cedo para não encontrar filas e voltar cedo para ter tempo de fazer o que mais gosto: nada, a não ser olhar sem pressa o tempo chuvoso lá fora, escutar as músicas de sempre que adoro, mexer no computador, o que nada adiciona à minha vida nem me enobrece. Mas a nobreza de alma já não faz mais parte da minha personalidade de hoje. Houve um tempo em que era essencial que eu lesse tudo avidamente, compreendesse rapidamente os fenômenos, buscasse soluções instantâneas e agisse sem pestanejar.
Hoje não, é urgente que eu refaça o caminho inverso; ler somente o que me interesse, compreender que os fenômenos existirão com ou sem a minha compreensão, que as soluções virão no tempo certo se eu cumprir a lei do mínimo esforço apenas mexendo a minha mão e as ações terão que ser lentas para cumprir a parábola da vida, senão, que graça haveria em viver?
Gosto de mim assim, aprecio a minha serenidade de hoje e preservo à unha o que conquistei; meu andar vagaroso, minha cabeça o tempo todo distraída, meu meio sorriso enquanto penso nas coisas que são minhas e que também não são, minha capacidade de errar e reconhecer meu erro dando gargalhadas de mim mesma.
Agora mesmo, no supermercado, uma conversa entre marido e mulher me chamou a atenção. Ele falava que precisavam de sabonetes, ela dizia que não, olhares do frio da espada se cruzaram entre eles, uma briga feroz de cachorro grande poderia se dar ali mesmo, os sabonetes suspensos na mão do marido, um em cada mão, a esposa resoluta em não levá-los, e para tanto, destilando uma intenção de bote de sucuri enquanto os olhos miravam e hipnotizavam o alvo, ou seja, o marido cuidadoso e necessitado de sabonetes. Ganhou quem lutou mais; a mulherzinha sem graça, de cabelo pintado de um loiro sujo, óculos de grau e vestido marrom abaixo dos joelhos. Sabonetes de volta à gôndola, rendeu-se o sujeito diante de tanta potência e valentia. Ganha quem tem mais armas e quem confia em sua própria força.
Comigo nunca foi assim e se foi um dia, já me esqueci. Levar sabonetes ou não levá-los para casa não tem a menor importância para mim, esquecer de comprar o produto que me levou ao supermercado depois de ter enchido o carrinho, chegar em casa e descobrir o ato falho, isso sim me faz chegar às raias do contentamento. Digo para mim mesma que sou especial e única, e me conformando, peço ao primeiro desavisado que se aproxima que vá cumprir o que deixei, sempre pedindo perdão com graça e zelo. Se o solicitado vai ou não vai, também isso não me faz despencar do humor tratado a pão-de-ló que eu há anos guardo e preservo. Ficar sem sabonetes não me fará mais nobre, nem mais suja, nem mais santa. Me fará ficar sem tomar o banho de agora que adiarei para qualquer hora do dia, sem tristezas ou lamentações, quando finalmente tiver o sabonete nas mãos. Factual, só isso.
Nunca tive um olhar hipnotizador e mágico, daqueles que conseguem tudo. Olhar de sucuri dentro dos meus olhos seria um estrangeiro em terras brasileiras, um peixe fora d´agua, a alegria no luto, um impropério.
Não, meu olhar ainda é vazado, vê por entre as coisas, atravessa e busca o outro lado. Consigo alguma coisa com isso? Acho que não, nem quero conseguir, me conseguir em mim é hoje o que me basta.
Mas gosto de ser assim, e gosto mesmo, meu olhar é igual ao bumerangue que tive no passado. Eu o jogo lá longe, ele volta pra mim, aqui dentro da íris dos meus olhos, só que me traz de volta, assim, serena, contente, um olhar amigo de mim.
Se tivesse um olhar animal, este seria do cachorro de rua que encontrei ontem à porta do edifício. Olhar meu, que eu vi e reconheci com alegria, que não pede e tudo aceita. Um olhar respeitado, respeitador e descomprometido, que busca sossego e nada quer. Só quer olhar.

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