05 September 2006

UM PRETO EDUCADO

Se hão de se chocar com o titulo dessa crônica, não vou suar em eufemismos, muito menos em palavras doces para me referir a esse cidadão que conheci há pouco, o preto educado; o mais educado homem com quem já cruzei.
Educado, educadíssimo, até que nunca um branco lhe chegaria aos pés.
Preconceitos à parte, porque sou poeta, e poeta não deve ter preconceitos, acho que poeta não tem nem ponto de vista, que é para ter os horizontes bem largos e saber que a vida é isso mesmo, um amontoado de besteiras que a gente vai poetizando, poetizando, até achar que valeu a pena.
Mas voltando ao preto, cujo nome não sei, mas fico imaginando que se chamaria João, João mais alguma coisa... Um indivíduo educado como aquele há de ter nome composto, não é possível que não tivesse uma mãe extremosa que não lhe desse logo um nome de príncipe depois do João... João Alberto, isso, João Alberto penso que seria perfeito para ele.
Quanto de altura? Um metro de 80, no máximo, porte robusto, mas não aparenta nem ser gordo, nem magro, nem forte... Um porte normal, de um branco normal. Usa roupas elegantes, embora eu perceba que não sejam, assim de grife, como sempre ouço por ai. Mas traja usualmente uma camisa social de mangas longas, arregaçadas, é claro, calor de Ribeirão, nem branco agüenta, o que dirá um negro, sangue quente, raçudo, acho que entende o que quero dizer.
Tem mais ou menos uns 55 anos, talvez tenha menos, não sou afeita a calcular as idades, não sou afeita a tantas coisas, mas sei que há muito passou dos quarenta. Ah, e usa um bigodinho démodé, daqueles que só um membro de uma família inteira tem, sabe-se lá porque.
Já notei, quando se chega bem perto, que usa perfume bom, recendendo masculinidade. Porém, o nosso preto não é nem másculo, nem viril, nem machão. É educado.
É meu vizinho. Poderia ser um colega do trabalho, poderia ser o dono de algum estabelecimento que eu freqüentasse, mas não, é meu vizinho. Não sei o que faz, nem adivinho. Às vezes nos cruzamos à espera do elevador, ele vindo de sua garagem e eu da minha. Vem a passos bem lentinhos, como se não quisesse me encontrar, mas acabamos juntos, nosso elevador é mais lento do que ele e sempre está nas alturas.
Daí se chega, vestido como descrevi, e uma pasta de executivo, ainda não reparei bem a cor, mas é uma pasta escura, e não parece pesada, que ele carrega com segurança e estranhamente com muito cuidado, gestos leves por cima da alça da pasta como se não quisesse acordá-la.
Quando finalmente nos encontramos, sacode a cabeça um pouco para a direita, não sorri, aliás, nunca sorri, mas abre a boca debaixo do bigodinho, e diz numa voz incrivelmente suave: “Boa noite, minha senhora”. Minha senhora! Eu, muitas vezes calçada de tênis, com malha de ginástica, a pele oleosa do calor, chave do carro na mão, impaciente olhando o mostrador dos andares. “Boa noite”, respondo apressada. . Ficamos em silencio. Não há o que falar a um preto educado. Do tempo? Ele não compreenderia... Falar do tempo a um educado seria o mesmo que gastar o Latim para favelado, ensinar logaritmos a recém-nascido, não falar de beleza a um narcisista. O silencio do educado é venerado, me parece que ele precisa de tempo para organizar a mente, sentir-se gente de novo depois de um dia intenso de trabalho. Tossir? Jamais! Tossir seria invadir a privacidade do educado, jogar-lhe nosso eu mesquinho e vulnerável por sobre seus ombros, perturbar sua serenidade com objetos orgânicos.
Sorrir, então... Não, melhor não, o preto educado não sorriria de volta, está acima de qualquer coisa subserviente que pudesse tirar-lhe daquele estado elegante, altivo em que ele se encontra. Aqui estamos nós, em frente ao hall do elevador, ele, olhando cada digito que desce, com muita paciência e nenhuma atração por mim ou pela minha conversa.
Os segundos passam, milagrosamente, a cada digito que descamba, vou dando graças a Deus. Afinal, há quase um ano que somos vizinhos, ele não me pergunta o nome, se estou gostando de morar aqui, o que faço para sobreviver, se tenho filhos ou se como goiabada antes de dormir. Nada!
Ele olha para baixo, para seus sapatos, aproveito e olho também... Às vezes são de couro marrom, às vezes pretos, nada de especial nos sapatos, mas ele os olha tanto, passo a achar que eles têm algo de mágico que nunca vi em sapatos de ninguém. Olhos os dele, e olho os meus, e assim, enquanto o elevador não chega, ficamos apreciando nossos sapatos, cada um a seu modo.
O elevador finalmente aterrisa no subsolo. . Penso, preciso comprar sapatos novos, esses já estão tão gastos, só uso esse par, porque não comprar um modelo mais arrojado e...de repente, um pensamento vívido me chega:
Meu Deus, Por que não compro sapatos? Toda mulher gosta de sapatos, as pessoas comentam, as revistas femininas divulgam, não há loja de sapatos que não esteja cheia de gente olhando vitrines, experimentando pares e pares. Não compro sapatos, nunca... E eu, tão vaidosa, mas incrivelmente para mim, andar com o pé na moda e bem calçado é um espanto... Por que não gosto de comprar sapatos?
Fico pensando na minha feminilidade, de quantas coisas deixei de fazer e comprar em função de ser mãe, de ter dois filhos, penso na abnegação de me doar sempre, de nunca dizer a não a nenhum membro da família, de suportar sacrifícios, forem quais forem para que os outros estejam felizes, para que tenham tudo o que desejaram, mesmo à custa da minha vontade, do meu ainda infantil desejo de valorização, de vaidade antes absoluta, indiscutivel, agora tardia. Penso em mim no antes e no depois. A juventude passou, e com ela a sofreguidão de viver intensamente tudo, a busca por aquilo que julguei belo, necessário, imprescindível, e o que ficou foi esse sentimento de doação sem fim, de eterno abrir de mãos e abrir de coração.
Olho João Alberto por um instante. Está de cabeça pensa, olhando seus sapatos também. Não deverá estar pensando o mesmo que eu. Seus sapatos são lindos, se está nesse momento pensando em comprar, certamente, não serão sapatos.
Pronto. O elevador chega. João Alberto, num ímpeto de vivacidade que eu não via até então, se joga na minha frente para abrir a porta do elevador pra mim. Claro, ele é um homem educado. Voz suave e mansa: “ Por favor, minha senhora” .
Entro, aliviada, e digo um “ muito obrigada” bem baixinho.
Agora ele aperta o botão que corresponde ao apartamento onde mora, me pergunta o meu, aperta também e subimos.... Ele mora mais baixo, vai descer antes. Segura a pasta com as duas mãos à frente, olha para cima a contar os andares que sobem lentamente, nem um suspiro eu ouço, um nada...
Chega. Abre a porta, não sorri, nem dá ar de intimidade...
“ Boa noite minha senhora” .
“ Boa noite” , eu replico.
Grande homem, fino e educado. Como é bom conviver que com pessoas, que sem falar absolutamente nada, nos enviam ao profundo de nós mesmos, nos fazem refletir sobre a vida, sobre nossas carências, nossos erros e tão poucos acertos...
Obrigada meu amigo João Alberto, posso chamar-lhe de amigo, reconhecer em você a destreza com que me faz refletir sobre a vida, embora por tão poucos minutos, e o prazer que sua companhia, calada e distante me dá.
Sim, creio que posso chamar-lhe de amigo, você me dá a confiança, mesmo atordoada no fim do dia, e com sua respiração leve, cadenciada, morna, me faz respirar junto com seu ritmo de respiração, e isso me torna mais calma, mais serena, exatamente como você se comporta,, empinado à porta do elevador esperando a saída.
Para que servem os amigos senão pra nos devolver a paz que nos faltou, o respeito da privacidade, o aceitar de nós mesmos em meio ao turbilhão que a vida nos obriga e comanda?
Obrigada meu amigo João Alberto. Sua companhia me é muito valiosa. Da próxima vez, continuarei calada e cabisbaixa, mas meu coração enviará a você toda a gratidão desses nossos momentos. Momentos únicos.
Você, por certo, nem desconfia, mas é tão bom saber-lhe meu amigo!

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