18 October 2006

FALAR DE DORES


Há vários tipos de dor; dor física, como dor de dente, dor de cabeça, dor de estômago, e dores mais cruciais, como deve ser dor parto ou dor rim, que dizem, as mais terríveis. E há as dores vindas do coração partido; dor de cotovelo, dor de rejeição, dor do abandono, dor de complexo, de culpa, de obsessiva loucura, dor de isolamento, dor de solidão.
O dicionário traz:
do Lat. Dolore s.f., sofrimento físico ou moral; mágoa ou aflição; pesar; dó; condolência, piedade, remorso; (no pl.) manisfestações dolorosas que precedem o parto. Com – de cotovelo; ciúme, inveja, despeito
De todas as dores, não há como classificar qual doa mais no momento em que sente dor. Dor é dor, pequena, grande, lancinante, contínua ou casual. Sentir dor é o mesmo que estar na ausência do bem estar. Bem estar é bom, mal estar é dor.
Há dias em que acordamos sem sentir absolutamente nada em nosso corpo, mas nossa alma está em dor. Dói tudo o que pode doer dentro de uma alma. E do que é feito uma alma? De gás? E gás dói?
De sentimentos, talvez. Mas sentimento tem matéria pra sentir dor? De personalidade. Não, personalidade é um conjunto de traços e vivências, não pode ali residir sofrimento em forma de dor.
Então, como classificar a dor de estarmos em pé, ou poderia até, estarmos deitados ainda, os olhos se abrindo para o dia após o sono, e lá por dentro, dentro de nós mesmos, além do coração e vísceras, residir um protesto de lamentação, a qual chamamos, dor?
A dor nada mais é do que uma campainha avisando... “ Tienes um problema”. Gosto de dizer isso em espanhol, porque me parece que nessa língua basca o aviso vem mais leve, mais amaciado. Disséssemos em nosso Português: “ Você tem um problema” , Vixi Maria, a coisa pegou. Espanhol tem essa qualidade de tornar tudo mais musical e soft. Então se o aviso vem: “ Tienes um problema”, a gente já começa a se perguntar onde o problema dói. Se fosse físico, seríamos capazes de identificar a região da dor. Parte de cima do ser humano , há muito que doer, o coração, estômago, esôfago, rim, baço, isso nem falando de pescoço, garganta, dente, laringe, faringe, depois a cabeça com seu complexo neural.
Parte de baixo, sobrou muito pouca coisa a não ser os órgãos genitais e as pernas, que quando doem, sabe-se porque, é só consultar o cérebro sobre as atividades das ultimas 24 horas. Pode ser gota ou fibromialgia, a síndrome das pernas inquietas. Doem. Unha encravada dói também, e como dói!
Mas a dor é abstrata, não há uma única descrição para ela que convença uma explicação. Vamos ao médico, ele pergunta: Onde dói? Facilmente apontamos região, o resto é que com ele, que apalpa, puxa, mexe e pergunta de novo: “ Dói aqui?” “ E aqui”? E a gente vai direcionando a dor sob os dedos do profissional, que muitas vezes nem sabe se está apertando muito e a gente grita de dor. Dor do aperto, nem sempre da dor propriamente dita. Daí a fastidiosa pergunta: “ Como é a dor”?
“ Sei lá como é a dor, doutor” . Como explicar uma dor, substantivo feminino abstrato para uma pessoa que talvez nunca tenha sentido essa mesma dor? Dor é dor, pão é pão e pedra é pedra.
Quando eu era criança, e passava as férias na casa de minha avó, havia esse primo, mais velho chamado Afonsinho. Era um milico, trabalhava na Aeronáutica, e uma certa vez, quando eu estava na casa da mãe dele, tia Maria Aurélia, este chegou com um aparelho hi-tech. Com ele media-se a dor.
Todas na sala enfileiraram-se à indiana para medir a própria dor, que era estimulada à base de choques em qualquer parte do corpo, com base na resistência de cada um.
Eram gritinhos e gritinhos, cada um estupefato ao perceber a sua dor exposta aos demais, e a própria fragilidade à prova.
Não quis medir a minha, desde criança temo por estar na berlinda, mas mesmo assim, diante da insistência dos mais velhos, lá vou eu com a mão tremendo e já sentindo os horrores do choque antes mesmo que este se encostasse em mim. Na primeira alfinetada, lancei mão da única coisa que traduz minha dor e até hoje não me larga. Chorei a cântaros. Nada me fazia parar.
Meu primo anunciou solenemente: “ Essa menina sente mais dor do que a maioria” . Pronto; fora ali assinado a mais contundente história de uma vida. Tanto que passei a considerar a dor como uma companheira que não se anuncia como uma campainha, eu era a minha própria campainha. Desse dia em diante, a dor passou a ter pra mim uma conotação relevante. Eu sentir mais dor do que a maioria me elevou a uma condição especial de portadora de sentimentos especiais. Se eu caía e ralava o joelho, a dor passava a ser mais importante que o tombo ou o risco de ter sido mais catastrófico. Era preciso reverenciar a dor, chorar o dobro por ela, cultivá-la, e guardá-la com carinho para o próximo tombo ou escorregão.
Depois, essa dor acondicionada em mim, foi se transferindo, solidária, para o interior do meu corpo, bem incrustada e fiel, e para qualquer momentinho de solidão ou perda, lá vinha ela, poderosa, não para me avisar de nada, mas apenas para me mostrar que ali estava ela, de prontidão, como fiel escudeira de mim mesma. O “tienes algun problema” para mim vinha assim “ Su problema es mi problema”.
A dor com a qual convivi por estes anos todos foi uma dor apenas. Um imenso e lodoso arraial para aonde me refugiei, me arrastei nos sólidos e insólitos momentos de infelicidade, fosse por rejeição, medo, angústia ou solidão.
As dores físicas então começaram a aflorar por sobre o meu corpo, muitas vezes chamada de enxaqueca, outras de frescura para quem não tem o que fazer. As gastrites, as eminentes ulceras, a dor de coluna, a dor no peito, tudo isso traduzindo um sentimento triste e aconchegado de dor de alma ou dor de ser.
De ser parte de um mundo que tem dores. Um mundo que conhece o bem estar, mas vive sob o signo da dor. Há dores demais, sofremos demais. Sofremos por sermos pobres ou sermos remediados, queríamos ter mais. E há os que sentem as dores de possuírem tudo e não possuírem nada.
Sofremos de ambição e da falta dela. Há dores de crianças, dores de adultos e dores nos idosos. As crianças por desejarem atenção, os adultos por desejarem atenção, os idosos por almejarem atenção.
A dor é um vício, um aditivo que nos consome, sentimos dor e não a queremos, quando ela se vai, nos primeiros momentos do refrigério, pensa-se na dor de outrora, e inacreditavelmente nos esquecemos do que sofremos, prontos para outra dor.
Dor é também é chiclete, que se masca, , masca, e não acaba. Quanto mais a mastigamos, mais comprida fica, mais sem gosto, mas ainda dá para mascar, até que o maxilar da gente se cansa e o cérebro diz: Joga fora! Alívio, que bom é ficar sem mascar chiclete depois de tanto mascar!
Com a dor foi mais ou menos assim. Fui mascando, e no comecinho até que tinha um gosto, um atrativo de quem sabia que a dor era uma diversão, acima de mim e superior a mim.
Foi-se o tempo, essa dor de antes hoje já não apela em mim o visgo de antes. Passou a ser uma espetadela insuportável, incomoda, repetitiva e cruel.
Hoje já me despeço dela, a velha e boa companheira, a fiel, a condutora. Mando-a embora como me despeço de uma estação, observando a mudança de fora e a mudança que se dá aqui dentro de mim.Uma despedida feita de paciência e gratidão.
E não sinto dor, sinto alegria, por ter convivido com uma entidade que foi única e importante em minha vida, mas que já cumpriu o seu papel de me aperfeiçoar e de me transformar. Agora, só de vez em quando, e mesmo assim chamarei outro tipo de dor, uma dor novinha, cheia de expectativas, que é a dor do nascimento e do descobrimento do novo.
Há vários anos guardo um trecho de Paulo Mendes Campos, que escreveu para uma certa Maria da Graça: " a própria dor tem que ter sua medida , e é feio, é imodesto, é vão , é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor".
Dor, oh, dor, você foi meu alento e eu, sua paixão,. No entanto, descubro agora, não fomos feitas uma para a outra, como pensávamos. É necessário que não fiquemos tristes, nem alimentando mais as nossas proprias dores. Portanto, vamos pensando que fomos, assim, boas comadres, uma vez amigas, mas agora bem distantes . Uma para lá e outra para cá.
Vamos fingir que estamos de mal.

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