A primeira lembrança que tenho é a de um berço e eu lá dentro. Calculo que tivesse meses, o berço era de madeira escura e tinha umas grades também de madeira, torneadas. Isso bem pode ser fantasia minha, porque me lembro do berço passando de irmão para irmão conforme iam nascendo, então não é de se espantar que o móvel só mudava a criança, sempre armado e habitado. Imaginar-me lá dentro é coisinha fácil de se fazer.
A outra lembrança mais longínqua, essa sim, não poderia ter sido devaneio, tenho detalhes da cena captada pela minha memória. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos, estava sentada no degrauzinho de uma casa de quintal estreito, fazia frio e era de manhã. Lá estou eu quietinha, sozinha, vestida de um casaco de lã verde pistache, casaco esse que minha mãe me deu anos depois e que eu ainda conservo dentro de um papel celofane transparente; ela guardava uma peça de roupa de cada filho já antecipando um dia a nossa saída de casa. Mulher preparada, minha mãe.
Verde pistache, de gola larga e arredondada, todo chapiscadinho de marrom, vermelho, amarelo, uns azuis de nuances diferentes, botões escuros de osso, apenas dois botões, largos, mas que fechavam bem o meu corpinho. A janela da cozinha dava para este quintal, e a cena é: Eu, euzinha, ouvindo de lá de dentro uma música que tocava, que eu ainda não sabia qual era, hit do momento certamente, e hoje todo mundo sabe, “Michelle” , dos Beatles.
A música tem uma melodia nostálgica, batida e marcada e um trechinho assim, em Francês: “ Michelle, ma belle, Sont des mots qui vont très bien ensemble, Très bien ensemble". Uma música triste, um recordar também tão triste. Eu, quietinha e acocorada, escutando o som metálico, o sol frio não esquentando, sozinha, já nessa tão tenra idade, começando a praticar em mim o que faço hoje, e sem o menor pudor. A meditação, a abstração, o isolamento, o não fazer nada, olhando para fora, só que vivendo para dentro.
Por isso, acredito firmemente; nasci poeta.
Meus caros amigos que me lêem por certo hão de me julgar da forma mais vil quando digo que sou poeta. Às vezes quando digo assim, justificando minha maneira displicente de me relacionar “Não liga não, sou poeta”, vejo em alguns olhares uma certa apreensão por eu estar ficando louca, demente, pirada ou drogada. Como se se nomear “poeta” fosse o mesmo que dizer que “Sou Napoleão Bonaparte”. Louco, e de pedra.
Mas ser poeta é ter um instinto natural, assim como ter um dom especial para ser pintor de paredes, ter prazer na profissão, escolhido para ajeitar a tinta, misturar as cores, molhar o rolo prensado algodoado e macio sobre a parede antes sem atrativo ,para trazer a nova cor à vista, e assim, em movimentos verticais de sobe e desce, ir se imbuindo da nova cor, entrando nela e atapetando então o que não se queria por um novo tom, que será um novo tempo para essa parede e os habitantes que coadjuvarão com ela.
Acho que não se constrói um poeta, nasce-se assim, com uma cisma por dentro. Cisma é ter-se um questionamento constante sobre o mundo em que vivemos e o mundo que vive dentro da gente. Os dois mundos não batem, nunca se completam; são absurdamente opostos. O poeta encomenda uma coisa e mundo entrega outra. Por isso, tanto lamento, tanta insatisfação. É como se viéssemos com um defeito inconsertável para esta vida de aceitações e renúncias. Não há ferreiro que dê jeito, psiquiatra que cure, benzedeira que afaste. A angústia é nossa, mesmo se o mundo parecer estar certo para tanta gente, e incrivelmente, olha que está!
Viemos com os olhos de ver errado, e mais ainda, os olhos que vêem o que ninguém vê.
Cai uma folha da árvore, passa batido para todos, o poeta capta o momento em que a folha se desprega do galho, vem voando entre assustada e bailarina, aqui e acolá, até despencar no chão. Pluft. Poesia.
Para o poeta a folha não deveria cair da árvore. Ou deveria cair. Ou deveria cair e não cair. Nisso, entre o relacionamento da árvore com sua folha, o momento de se separar dela para sempre, a surpresa da folha ao ser desprezada e rejeitada abruptamente pela árvore, eis o mistério para o poeta. Os olhos das pessoas não-poetas enxergam ou não enxergam a folha cair. Para o poeta entretanto, é um fascínio único e que acontece todos os dias, em todos os lugares, mas que ele captura com seu olho interior e exterior, congela, delira, enquanto acredita que foi a primeira vez que viu algo despencando assim, uma simples folha travestida de um verde de asas, um paraglider montado em natureza, um anjo da seiva.
O poeta é um transformador, um modificador das coisas. Coisas corriqueiras do mundo não são coisas, são um spectrum de oportunidades de se ver ao contrário e de forma exclusiva .
Ouve-se uma frase em meio à muitas, o poeta separa a frase, anota no seu inconsciente, mais tarde ela vira um verso ou um poema inteiro, estimulado por algo que se ouviu e já nem se sabe quando ou porquê.
Se o poeta não escreve, ainda assim nao deixa de ser poeta. Seja por falta de papel ou lápis, oportunidade ou ocasião, mesmo assim a poesia continua a exercer nele a sua regência, pois sendo dinamica, não espera hora nem lugar. Por isso muitas vezes, na fila do ônibus, em meio ao trânsito, bem no início de uma reunião, é comum reconhecer o poeta que está poetizando só em pensamento, impossibilitado ali de colocar abaixo os versos que acaba de fazer. Imóvel, olhos vidrados, atemporal. Daí as senhas próprias. Faz-se um verso sobre a mulher obesa que atravessa rua, mas como não se pode escrever ali, naquele momento, registra-se no cérebro " mulher obesa" , e um dia, quem sabe, aquela figura ou o sentimento da obesa por ser obesa vai constar em algum poema, já destituído de sua motivação inicial. Um bom poeta não lastima poemas perdidos. Há sempre uma nascente a jorrar poesia; ele sabe que outros virão.
Veja bem, o poeta não vive em transe, o transe é o mundo exterior que se nos apresenta.
Não confunda o bom poeta com o poeta bissexto. Poeta bissexto, bem denominado por Manuel Bandeira, é aquele sujeito que em raros momentos de profunda dor ou solidão, escreve um poema absurdamente bom, e ali a poesia se basta. Ele pode tentar, tentar, mas ela teimosa, não volta. O poeta bissexto é um desafortunado. Vive igual a todo mundo, se tem a angústia a apertar-lhe o peito, espreme o espírito e daí pode sair algo belo.Uma vez liberado o sentimento, volta rapidamente para ao mundo exterior, se esquece da poesia e ela fica ali, esperando outra oportunidade para voltar à tona. Pode voltar nunca mais, desesperançada de estímulos. É sempre uma pena.
E há os poetas desiludidos do amor, ou ao contrário, repletos de amor. Ama-se alguém doidamente, faz-se um poema, perde-se esse alguém, mais poema, mas agora de frustração. Esses não são poetas de verdade, são os " poetas da oportunidade" ; os poemas dos amantes são todos iguais, não importando estilo, idade ou o objeto amado. Lê-se um e já se leu todos. Falam de vida, beijo, saudade, mas se a ordem dos versos fosse alterada, nao se perceberia nada. Pode-se começar a ler do fim para a começo, do meio para o início, tudo seria a mesma coisa. Esses iludidos ou desiludidos poetas também têm a sua importante função, consolam-se na sua poesia e pode ser que atraiam de volta o ser amado; nunca se sabe se o amado ou amada se sensilize com a poesia. As vezes pode ser um tiro no pé.
O poeta de verdade não precisa do ser amado como objeto , a poesia é a amante, a dedicada companhia, os quatro pilares de sua sustentação. Fala-se da lesma que subiu na folha, da mosquinha verde que pousou por cima da sopa, do homem taciturno que bebe seu café lendo o jornal. Vive-se a poesia como se vive um credo. Fiel, absoluto, inerente e próprio.Não se sabe onde começa um e termina o outro. Poesia e poeta são unha e carne, irmãos siameses, não traz o ser amado de volta por causa dela, o ser amado é mais um pretexto para ser objeto da poesia.
Mas o mundo real é mundo também para nós poetas. Vemos o encardido das meias, ouvimos a buzina estridente do carro lá em baixo, nos aborrecemos com o calor e lastimamos o frio. As pessoas ainda têm dentes amarelos, os passarinhos deixam muita sujeira no vidro dos nossos carros, e às vezes nos pisam nó pé sem dó. E sem desculpas.
O mundo fora do poeta é um mundo mudo. Parece ser uma pintura sem vida e sem suor, sem carne e sem espírito. Todos os dias, acordamos, a rotina cai sobre a gente, igual cimento batido. É preciso comer, dá-lhe supermercado, é preciso vestir alguma coisa, corre-se em lojas e cumpre-se a obrigação de comprar o necessário, é preciso cortar o cabelo, senta-se na poltrona do cabeleireiro e torce-se para se acabar logo com isso.
Porém, é preciso entender que o mundo exterior sustenta a poesia. Sem ele, seríamos seres flutuantes e diáfanos, ficaríamos vagando na imensidão sem onde encostar a cabeça. Não acordaríamos nunca, não nos obrigariam a fazer crediário nem a consultar o relógio para o próximo compromisso. O poeta sem compromisso é um poeta morto. Jamais veríamos a luz do dia e não dormiriamos à noite. Não precisamos do tempo nem de espaço, nos bastamos.
Mundo exterior é mundo cão, mas é bom.
Gosto de acordar cedo, tomar meu banho sem pressa, me revestir da rotina do dia, fazer café, consultar a despensa, verificar o que preciso deixar pronto para os outros que acordarão mais tarde.
Passeio pela casa, ajeito um cinzeiro, arrumo as revistas, coloco o controle remoto no lugar, levo os copos usados para a cozinha, lavo-os com uma alegria juvenil como se estivesse a escrever um conto, me sorrio em frente ao espelho, escolho meu colar de contas enquanto penso no dia que vou ter, nas aulas que darei, no livro que preciso comprar.
Mundo exterior é necessário, é básico.
Gosto de sentir que tenho um pé cá e o outro, lá.
No “cá” da poesia o pé flutua, rindo, igual às folhas altas da palmeira que cultivamos aqui em casa, que o vento sopra como quer. O outro pé está metido numa terra poeirenta e rasa, firmado sobre o chão, como que se marcasse a existência sobre o maior da vida. A subsistência, a rotina, o tédio, a competição, inimizades, o tráfego, o burburinho do bar que nunca fecha, as promoções on-line...
Bi-seres, bi-gente, bi-tudo, somos poetas, que vemos, que sentimos, e ainda mais, que nos mesclamos a vocês, gente daqui e gente de verdade.
Se por acaso você estiver numa conversa boa com um poeta sobre a última moda ou sobre o resultado da eleição, pode ser que de repente, sem mais nem porquê, você descubra que já está falando sozinho e o poeta se foi. Se foi como fumaça em meio ao rodamoinho, partiu para dentro de si e se minimizou a ponto de voltar a ser aquela menininha com frio, numa manhã ensolarada no quintal, vestida de verde pistache, escutando atenta aos sons nostálgicos que vinham lá de dentro e já sonhando quem sabe o que ao som de Michelle. Dos Beatles. Pra quem não sabe, década de 60, um tempo bom.
Mas o mundo real é mundo também para nós poetas. Vemos o encardido das meias, ouvimos a buzina estridente do carro lá em baixo, nos aborrecemos com o calor e lastimamos o frio. As pessoas ainda têm dentes amarelos, os passarinhos deixam muita sujeira no vidro dos nossos carros, e às vezes nos pisam nó pé sem dó. E sem desculpas.
O mundo fora do poeta é um mundo mudo. Parece ser uma pintura sem vida e sem suor, sem carne e sem espírito. Todos os dias, acordamos, a rotina cai sobre a gente, igual cimento batido. É preciso comer, dá-lhe supermercado, é preciso vestir alguma coisa, corre-se em lojas e cumpre-se a obrigação de comprar o necessário, é preciso cortar o cabelo, senta-se na poltrona do cabeleireiro e torce-se para se acabar logo com isso.
Porém, é preciso entender que o mundo exterior sustenta a poesia. Sem ele, seríamos seres flutuantes e diáfanos, ficaríamos vagando na imensidão sem onde encostar a cabeça. Não acordaríamos nunca, não nos obrigariam a fazer crediário nem a consultar o relógio para o próximo compromisso. O poeta sem compromisso é um poeta morto. Jamais veríamos a luz do dia e não dormiriamos à noite. Não precisamos do tempo nem de espaço, nos bastamos.
Mundo exterior é mundo cão, mas é bom.
Gosto de acordar cedo, tomar meu banho sem pressa, me revestir da rotina do dia, fazer café, consultar a despensa, verificar o que preciso deixar pronto para os outros que acordarão mais tarde.
Passeio pela casa, ajeito um cinzeiro, arrumo as revistas, coloco o controle remoto no lugar, levo os copos usados para a cozinha, lavo-os com uma alegria juvenil como se estivesse a escrever um conto, me sorrio em frente ao espelho, escolho meu colar de contas enquanto penso no dia que vou ter, nas aulas que darei, no livro que preciso comprar.
Mundo exterior é necessário, é básico.
Gosto de sentir que tenho um pé cá e o outro, lá.
No “cá” da poesia o pé flutua, rindo, igual às folhas altas da palmeira que cultivamos aqui em casa, que o vento sopra como quer. O outro pé está metido numa terra poeirenta e rasa, firmado sobre o chão, como que se marcasse a existência sobre o maior da vida. A subsistência, a rotina, o tédio, a competição, inimizades, o tráfego, o burburinho do bar que nunca fecha, as promoções on-line...
Bi-seres, bi-gente, bi-tudo, somos poetas, que vemos, que sentimos, e ainda mais, que nos mesclamos a vocês, gente daqui e gente de verdade.
Se por acaso você estiver numa conversa boa com um poeta sobre a última moda ou sobre o resultado da eleição, pode ser que de repente, sem mais nem porquê, você descubra que já está falando sozinho e o poeta se foi. Se foi como fumaça em meio ao rodamoinho, partiu para dentro de si e se minimizou a ponto de voltar a ser aquela menininha com frio, numa manhã ensolarada no quintal, vestida de verde pistache, escutando atenta aos sons nostálgicos que vinham lá de dentro e já sonhando quem sabe o que ao som de Michelle. Dos Beatles. Pra quem não sabe, década de 60, um tempo bom.
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