Não faz muito tempo, aprendi a fazer bico.
Fazer bico é a coisa mais simples de se aprender, uma vez aprendida, pega-se o cacuete para o resto da vida, a gente nem nota mais, e está fazendo.
Nunca pensei que fazer bico fosse a prática mais deliciosa das práticas, porque não custa nada, pode-se fazer a qualquer hora e tem-se a vantagem de se exercitar os músculos da face na prevenção das rugas. Fazer biquinho então, é fazer uma meia careta, meio ensaio de cara feia, mas no fim, é só um bico feliz.
Primeiro eu observei uma pessoa que fazia seus bicos no intervalo das frases. A pessoa falava, e torcia a boca para um lado, e depois para o outro lado, olhava para cima e continuava o pensamento, para três pensamentos depois, repetir o ato exagerado.
Comecei timidamente, na intenção de praticar sozinha e sem que me dissessem "Olha essa cara feia!" Sentada ao computador como fico, horas a fio, achei que esse momento era o mais apropriado para se praticar a mania do bico. Escrevi uma frase, olhei para o alto, entortei a boca para a direita, os lábios bem fechados, apertados... Gostei. Fui adaptando então as torturas dos lábios para lá e para cá, tanto que parei de escrever por completo, e assim fiquei, uns cinco minutos alternando os longos olhares para o teto e apertando meus lábios em diferentes rotações. Quero também ressaltar, que no meu caso, enquanto faço os bicos, um monte de idéias luminosas me ocorrem, e que até achei que passei a escrever melhor. É como se o bico fosse um start up para o pensamento pegar no tranco, e depois quando tudo embola, a gente pára e refaz o bico, a fim de continuar dentro do ritmo de antes. O bico, compreenda, tem a função de pinça que vai desenroscar o que estava perdido. Bico, hoje para mim, é o intelecto em exercício.
Confesso aqui, aos meus poucos leitores, que ainda não ensaiei meus bicos em frente ao espelho e não o farei; não quero me contemplar na mímica dos gestos; agora é fazer ou fazer, nao adiantará mais verificar se está correto, feio ou impróprio.
Ontem à noite, porém, em meio a uma conversa muita dura, em meio a uma falta de compreensão injustificável, e uma dor de coração que não tinha mais jeito de crescer, descobri uma nova modalidade de bico: o bico da dor de alma. Meus lábios, involuntariamente, foram se apertando e se revoltando para fora da boca, enquanto as lágrimas caíam por sobre o que se formara deles; dois montes de lábios, um aporte monstruoso, uma justaposição sem ensaio, um bico de impotência e dor. Bico de quem está na mais profunda melancolia e que não julga mais ter-se de volta a alegria perdida, bico de quem se fechou para sempre e não quer negociar, bico de quem sabe que jamais voltará a sorrir como antes, mesmo que um dia, depois de algum tempo, se sorria como antes, e tenha-se se esquecido um dia da maltratação da alma. Porém, a hora do bico é essa, a impossibilidade de. Bico de gente adulta é bico sério, portanto, um bico de proporções senior, um puta bico, para maiores de idade.
Hoje de manhã, quando acordei e me olhei no espelho, o teimoso ainda estava lá e saibam, posso senti-lo agora aqui, enquanto escrevo, do jeitinho que me foi encomendado.
Portanto, meu caro leitor, estou de bico, e esse bico agora está permanentemente em mim, ostentoso e vísível, como se me tivessem feito uma cirurgia trabalhosa e não me tivessem retirado os pontos. Estou em estado de recuperação, mas ainda estou em dor.
Bico, nas horas boas, é divertido, inconseqüente, bizarro. Entretanto, acabo de descobrir, nas horas do sofrimento de verdade, é o sinalizador do seu espírito.Os olhos combinam com a boca, ficam apertados, retidos, meio caídos. O corpo também ajuda o bico da dor a ficar mais bico; a gente anda até um pouquinho torto, pesadamente, sem alinhamento, no contrapeso do tamanho do sofrimento. Dor e bico, acredito, são irmãos siameses.
Não me peça para sorrir hoje, quero estar aqui, solitária, triste de dar dó, nesse dia nublado, nesse feriado desesperançado, nessa falta de diálogo que se instaurou, só e só, eu e meu grande bico.
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