23 March 2009

AMAR UM PÁSSARO - O PRAZER DENTRO DA DOR


Quem já amou um dia sabe o que é ter a dor e o prazer do amor. “'Beleza, Bem, Verdade' sós, outrora; num mesmo ser vivem juntos agora,” de Shakespeare, englobam o que o amor inspira e o que amor transforma.

O amor é a modificação da natureza humana. Nasce-se insípido, neutro, sem ódio, sem amor, sem gostar, sem desgostar... E é já nos primeiríssimos tempos de vida, com os estímulos externos que se vai descobrindo do que se gosta e do que nos dá desconforto. Até o bebezinho, nas primeiras horas no mundo, já dá suas caretas de dor e prazer ante a água gelada e o colo morno. A vida é a mestra em ambigüidade, posto que sem se conhecer a dor, é pouco possível que desfrutemos do prazer. Segundo os Epicuristas, o prazer alcançado através da dor é muito mais prazer, já que não há o gosto realçado do doce, sem nunca ter se conhecido o amaríssimo amargo.

Se o amor é o modificador da humanidade, não seria a dor, também, modificadora do gênero humano, embora em outra polaridade? O que seria dos seres humanos sem o amor? Reles animais predestinados à procriação e perpetuação da espécie? E o que seria dos nós, seres humanos, sem a dor? Ainda primitivos, encavernados, silentes, não tendo absolutamente nada para nos preocupar e isentos da vontade de evolução. Não teríamos descoberto o fogo, que nos aqueceu nas noites frias, nem a batata assada, e assim estaríamos a comer peixe cru e a roda seria o sonho até agora, não sonhado.

Amar um pássaro é isso. Dor e prazer na mesma intensidade. De que é feito um pássaro? Dor da partida, freqüente e desvairada; prazer no retorno, imenso e recuperado.

Se eu fosse bióloga, (e deve existir alguns que estejam me lendo), pensaria com a cabeça dos biólogos, e com todo o meu respeito, diria como eles diriam, aquilo que eles vêem:

subst m pássaro ['pasɐru] pequeno animal de penas que voa.

Contudo, não sou bióloga, e sim poeta. O poeta não vê as coisas como as outras pessoas vêem, mas da forma como essas coisas são. Um pássaro para um poeta, é um emissário do destino e um transporte para a liberdade. Em suma, um pássaro é a própria viagem emplumada; sem ele não haveria sentido do imaginar ficar e o retomar do vôo.

Portanto, amar um pássaro é amar um ser transeunte, um ser que está de passagem, que não tem parada. Os ninhos, para os pássaros, são meramente berços de criança; depois da fase to tatibitate, adeus berço e adeus aos tempos de dependência controlada; o ar é a sua casa.

Amar um pássaro é simultaneamente pertencer e desapertencer de alguém, é não querer mais regras nem horários, é falar de céu e respirar de ar. Um pássaro não conhece o medo, pois o medo é parte intrínseca da trajetória do espaço, posto que não havendo bases, só a preocupação leviana de mares a cruzar, nuvens a alcançar, rotas a perseguir. O pássaro que está no chão, está ali por pouco tempo, pois sabe que o chão lhe representa o risco e o que lhe inspira é anti-natural.

Amar um pássaro então é travestir-se de pássaro, pois os pássaros jamais poderiam compreender um amor de lesma, que só ama o chão. Se um pássaro se apaixonasse por uma lesma, e com ela quisesse plenificar essa paixão, teria que se conformar em ser terreno, e perderia assim, a sua identidade aérea que lhe confiaram. E se a lesma, apaixonando-se pelo pássaro, poderia desistir da sua virtude de pó, almejaria ter asas, e não as tendo, por saber e conhecer apenas de solo, se mataria de amor ou de perdição por este amor platônico e impossibilitado. É a realidade essencial. O mundo da matéria seria apenas uma sombra que lembraria a luz da verdade essencial.

Disso pode-se concluir que o amor Platônico é uma interpretação equivocada do conceito de Amor na filosofia de Platão. O amor em Platão é falta. Ou seja, o amante busca no amado a Idéia - verdade essencial - que não possui. Nisto supre sua falta e se torna pleno, de modo dialético, recíproco.

Na impossibilidade de ser pássaro, e para se amar bem um pássaro, é necessário ser ambíguo: ter asas na mente e a posição de sentinela que nos gruda ao chão. Nas impossibilidades que se quer suplantar, para o que pássaro se deite, é preciso desejar ser ar.

Wm suma, para amar um pássaro, tente revestir-se primeiramente de uma coisa louca chamada “liberdade” que muitos conhecem e pouquíssimos praticam. Liberdade significa a bênção generosa à hora da partida, a amorosa permissividade, a tresloucada confiança e a fé nos ares que o pássaro irá cruzar. Para amar um pássaro, não basta ter-se providenciado um par de asas fictícios e um coração de prata que resiste a tudo; é necessário também entender de solidão voluntária, a solidão pesada daquele que fica, e não a solidão involuntária e feliz do pássaro, já que este irremediavelmente suscita a solidão dos vôos, na partida. O que fica, aquele que não é pássaro, passa então a projetar mentalmente os mapas que a solidão certeira do outro cruzará, e sente internamente aquele prazer momentâneo de amar dentro do espelho do amor do outro: a dor no prazer e o prazer da dor.

Resumindo: se você não é pássaro e ama um pássaro, não seja como a lesma que amarga sua condição de impossibilidade rastejante. Revista-se do luzeiro da jornada e da missão do seu pássaro, acerte seu tempo biológico com o espaço , pense como o pássaro e aja como se fosse um deles, assim, o amor que existe em um passa a amalgamar-se no amor viajante do outro, que só poder dar numa coisa: um amor só, bela pintura arredondada que gira e prossegue, que se finca na terra, mas que atrai a luz.

Se você, algum dia, já amou um pássaro, compreenderá o que escrevo, e se não amou ainda, desejo-lhe que lhe aconteça um amor de asas de independência, que lhe fará livrar-se dos grilhões do egoísmo e da estreiteza das verdades.

O mais lindo disso tudo, se é que ainda haja mais lindeza no amor, é que os pássaros que não se engaiolaram sempre voltam para aquilo que deixaram, senão pelo prazer da volta, para também exterminar a dor da ausência que se criou em liberdade. É a dependência da medida exata da liberdade que se ofertou. Para aumentar o prazer, é necessário aplacar a dor.

Novamente, segundo os Epicuristas, é na antítese da dor que entendemos do prazer, no todo. Portanto, esta, que já sofreu as agruras da repressão , da insistente liberdade vigiada; que já carregou as pesadas bolas de ferro nos calcanhares e que perdeu seu sorriso na falta de extensão; esta que tinha como destino o infinito, mas que vivia encalacrada com os medos das próprias pegadas, agora ama um pássaro, vê-lhe a beleza aérea, , volátil, admira sua destreza de leveza inculpada na partida, carece-lhe dos lances de impetuoso arroubo e o pouso das surpresas breves.

Aos homens pássaros, dedico um amor de poeta sem asas, sem contudo deixar de dizer que foi no prazer dentro da dor que venho aprendendo a voar, eu mesma, dentro da minha vasta liberdade individual, que me expõe nua, aos outros que me lêem, que mostra a minha cara lavada e deslavada, que vem a ser a poesia, libertada e indomada, e que modestamente chamo de minha poesia máxima.

Minha poesia e eu hoje, entendemos de asas. E entendemos também de amar um pássaro.


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