04 January 2007

AO CONTRÁRIO


Se você me lê há algum tempo, certamente já deve ter notado que gosto de me referir ao “contrário” das coisas. Daí nasceram expressões minhas como “viver ao contrário”, “sentir ao contrário”, “falar ao contrário”.
Não quero aqui justificar meus pensamentos tortos, nem para mim mesma e nem mesmo para alguém que me possa ler, porque é absolutamente injustificável querer as coisas ao contrário. Eu as quero assim, e pronto. O mundo ao contrário deve funcionar melhor, senão, veja se me entende; se chorássemos primeiro antes de sentirmos qualquer dor, ali mesmo impediríamos que a dor viesse. Contornaríamos a dor. Se comêssemos antes de sentirmos fome jamais saberíamos o que é fome, acho que há pessoas que ainda não sabem, vivem comendo toda hora; conheço gente assim às pencas. Se nos detestássemos antes de dizer “eu te amo” salvaríamos aí um bom saldo de desprazer, ficaríamos somente no detestar, e que mal há nisso? Se eu detesto, mantenho a distância, se mantenho a distância, não me zango, se não me zango, não te perturbo, se não te perturbo, não nos detestamos tanto assim. Muito pelo contrário.
Se voltássemos primeiro ao invés de irmos, se nos banhássemos primeiro ao invés de nos sujarmos, se lêssemos todos os livros contidos numa vida bem à hora do nascimento e fossemos emburrecendo ao longo dela, nada mais justo e mais saudável. Para os velhos, basta que haja paz de espírito e perfeita ignorância das coisas, pois ao contrário, para que tanta sabedoria e lucidez à hora de morrer?
Eu preferiria escrever ao contrário a que sempre escrevi. Primeiro falaria do fim do poema, que é a conclusão definitiva de quem eu sou, e daí sim, escreveria o preâmbulo como o desfecho, só para dar aos outros e também a mim mesma, a intensa diversão de só lidar com as palavras.
O contrário sempre é mais verdadeiro e autêntico. Pega-se uma blusa, vira-se ao contrário, lá estão marcadas as costuras, as pregas, a construção exata do projeto. O lado sabidamente "certo" é perfeitamente ajustado ao ilusório, ao sentido plástico, irreal.
Quero viver ao contrário, mas não me deixam. Quando canto uma canção, quero que me aplaudam primeiro, capricharei na canção se for assim, bem aplaudida de fato.
Quero morrer ao contrário também. Quero estar no paraíso de alguém que me espera, sair de costas, pé ante pé, bem devagarinho, me livrar da terra que me se assentou por cima, retirar as flores fétidas uma a uma, cair na cama, abrir os olhos, dar o último suspiro moribundo, arfar com o peito forte e contente, e gritar: “ Tem sopa hoje?” Depois, levantar e ir ao cinema.

1 comment:

Anonymous said...

Ci...
Esta ficou MUITO BOA. Merece se publicada no New York Times.