29 September 2007

ANJOS E CAMINHOS ERRADOS




Estou num momento em que, se há anjos
Um pousou agora sobre meu ombro direito
E me sussurrando ao ouvido
Me mandou trilhar o caminho
Onde, se há maldade, eu como a maldade
E se há conveniências, eu recolho todas
E ainda mando timbrar em cartório com selo de eternidade
O pré-contrato da ambiguidade que me tornou assim
Hoje, estou caindo de madura
Amanhã, uma serpente
Que eu disfarço debaixo dos meus guisos de euforia

De lerdeza e de preguiça
No dia em que me apaixonei
Senti que estava indo para o caminho errado
Onde as placas de indicação eram todas adulteradas
E não havia anjo que desentortasse
Agora que me desapaixonei
As placas nem foram retificadas
Só tem um anjo à porta da estrada
Ele está com o dedo em riste
Dizendo,
"Volta"!
Eu não volto, não
Anjos não sabem o que é amor
Nem o que é a praga do desamor
Anjos sabem de sussurro e sopro,
Eu sei de dor.


POEMA DE SONHAR


Quando sonhei esta noite
Vivi aquele momento de mulher sozinha
As pessoas que povoavam o meu sonho falavam como camelôs
Cada um falava mais alto
Eu não;
Eu era aquela que ficava na observação da cena do crime
O sonho me traz uma lucidez que ninguém na vida me dá
Nem as sessões de falar de mim mesma
Momento de sacar o revólver e me encher de balas de confete
Nem quando eu explico e explico aquilo que não sou
O sonho me traz exatamente o molde de que sou feita
Por dentro, imagens
Por fora, plasticidade
Tudo que está acontecendo,
Eu fico num canto, vendo
Maldito quem inventou que sonho é a interpretação da vida
Sonho bom é espelho,
Não é explicação.


CONFIRMAÇÃO DO ADEUS


Nem soube contar quantas despedidas lhe fiz
Cada despedida era diferente, entretanto
Um dia eu falava "adeus" e chorava o Mar Morto,
Mais sal que água
Noutro dia eu pronunciava "até nunca mais" e o choro
Partida de futebol,
Começava com a esperança das turbas dentro de mim,
Terminava em noite solitária, eu e o rádio...
Quando lhe digo "adeus", sei que digo adeus a mim mesma
Aos meus compromissos mais geminados
Aos meus futuros de instáveis cartas de baralho, empilhadas
Se lhe digo "adeus" agora
Se lhe digo "até outro dia"
Se lhe digo" parta-se de mim"
Foi porque me disse
"Parti-me de mim"
Parti-me em dois pedaços
O adeus que eu disse está aqui
O adeus que eu direi ainda está à frente da estrada
Sozinha, estou eu, portanto,
O adeus é só a confirmação do fato.


24 September 2007

A LESMA E EU


Há tempos que eu não via uma lesma andar
Quase pisei numa quando vinha absorta contornando o canteiro de flor
Ao simples pensamento de esmagar uma lesma debaixo do meu salto

Me fez pular
As lesmas não têm sentimentos, nem consideração
Só lesmam e passam
Naquele universo simples de passar
Medito na vida e vejo que ela também passa
Os mistérios que me intrigam,
A cor rosada das bochechas da criança no colo da mãe
Os ventos frios que sopram de madrugada quando quero ressonar

O segredo do trote do cavalo que só sabe marchar pra frente
Só desses pensamentos é que me ocupo
E se há vida perto de mim, vislumbro-me
Tudo o que é vida me excita
E o que não é também me instaura
Um medo do inexistente
Um medo de não existir mais
Por que não fôra eu uma lesma
E a lesma, eu?
Eu, se fosse a lesma, saberia agora que passo
Ao risco do salto do sapato,
E a lesma, eu,
Aquela que não dorme e indaga.


23 September 2007

MISTURA FINA DE MULHER


Um silêncio de pó de móveis
Uma sabedoria dos simples
Um gesto de animal depois do prazer
Um calor de forno que assa bolo
E um desejo de invencionice
Que cria a perfeição
Estado de maresia
Estado de pós morte
Assim é que me encontro
Não sei se triste
Não sei se doce

Estou,
Acima da dor
Abaixo do gozo,
Naquela região onde os sentimentos se misturam
Então, estou assim
Mistura fina de mulher
Um pouco da indagação do medo do futuro
E do presente,
Um pouco de sorte.


22 September 2007


Quem nunca sonhou numa manhã ardente como a primeira de Setembro
Como a de hoje
A primeira que me viu verdadeiramente feliz
Em que o céu nem de longe me lembrou os tempos tenebrosos
Que deixei na curva lá de trás
Nunca saberá o que sinto agora
Tenho desejo de escrever
Mas não consigo
E o que tenho
É só felicidade
O estado da felicidade é nocivo aos anseios do poeta
É o alho amarrado que espanta o vampirismo do meus versos
Por isso acho-me só,
A poesia, assustada, já voou...



20 September 2007

FORMIGUINHA


Há uma formiguinha andando por sobre a beira do meu copo
Estou achando graça nas perninhas afoitas da formiguinha
As articulações são frágeis e ridiculamente nanométricas
Percebo-lhe andando, mas não percebo-lhe o andar
Só o movimento rápido de rodar,
A circundar o copo, sem que a saída ache
O copo está irrepreensivelmente paralizado
Se fosse gente, seria meu amor, inerte,
Atarantado de prazer sentindo meu pouso leve
Enquanto eu lhe circundo o tórax
E lhe arrebento a pele
Mas é um copo
E a formiguinha está, inutilmente
A despertar em si apenas o que sente
Distração, talvez
Talvez, contentamento
Até que se canse e pule para o vácuo
Nisso reside o amor da formiguinha para o copo
Um, oportuno e desatento,
O outro, desespero e movimento.






19 September 2007

RETRATO


Hoje vi uma rua poeirenta e suja
Uma rua de periferia,
Abrasileiradamente desleixada
Lembrei-me do seu retrato
Que estava amarfanhado em meio às notas da minha carteira
A rua não estava sozinha
Era um apinhamento de gente,
Pernas coloridas de bronzes de nascença
Uma festa animalesca de camisetas vermelhas
Crianças chupando picolé e as velhas na calçada,
O pó acobreado ardendo os olhos
O calor, o calor,
E a rua, plena
Seu retrato é o único sinal de vida que carrego
Na imagem única, seu sorriso enfadonho e cru
Nada restara daquele sorriso in loco que eu guardara
As cores do retrato explodiram seu afeto
Meu afeto esvanece-se e derrete-se na calçada
É só um retrato, desapinhado,
É só um momento do passado,
Um risco fotografado,
Você não ficou em mim
Eu nunca lhe fiz morada
Passei, passamos,
Enquanto a rua passa.



13 September 2007

NÃO FALO NADA


Tenho desanimado de viver
Ou a vida desanimou de mim?
Vejo e o que vejo é o que sou agora
Essa cadeira velha,
Esse encosto acomodado
Estas pernas sem razão de ser...
Penso no que fui e no que teria sido
E não me refaço
Se eu fosse uma cadeira
Como aquela que vi beirando a sala da vitrine
Uma cadeira nova
Uma cadeira que tivesse aspirações de ser mais alta
Mais acabada e sem pressa
Mais para vento do que para assento
Mais riso do que siso,
Por certo eu já seria feliz.
Hoje murmuro por sobre a cadeira que sou
Aqui, num canto,
Infeliz;
Questiono quem me machucou
Questiono minha própria mutilação quando não era inverno
Quando não era verão
Quando eu não era nada
Nem sonsa eu era
Nem tímida,
Nem atarefada
Eu era, apenas
Agora sou assim,
Rígida e malquebrada
Resmungo se alguém me cerca
Mas ainda assim
Não falo nada
Como antes
Não falo nada.