26 March 2008

VERDADE


Quando me falares a verdade
que tu a digas bem devagar
verdades são o ar que se engole pouco
e que se engole sem notar
Mas quando me falares a mentira
- pérfida criatura do subterrâneo -
que tu a digas de um modo instântaneo
que seja breve o teu falar
e que seja breve a escuridão da tua fala
mentiras são a terra
que engole alguma verdade
que ainda não se pôde revelar.

25 March 2008

POEMA PARA ARGENTINA


Que saudades de ti, Argentina
da fala nervosa da tua gente
e das figuras espigadas
sentadas nos cafés nebulosos
de cigarrilha e açúcar.

Hoje choveu aqui onde estou,
bem no meio da tarde;
A tua Buenos Aires entrou pela sala adentro
rigorosa e festiva num mesmo tempo
Dançaste um tanguito de menos
às quatro horas em ponto
e me fizeste enredar no teu frio suave
como foi suave sentir teu frio sobre um tigre aberto,
livre, de vento rasteiro congelando meu rosto
por cima do meu deslumbramento
de te sentir nua
e de te sentir inteira.

Ah, que saudades de ti, Argentina
Pudesse eu sentir novamente as tuas peles frescas
e te pudesse envergar, Argentina,
Seria eu um bicho que voa longe
Te pousaria sobre uma avenida escancarada
larga como um ventre de mãe
e trocaria minha nacionalidade duvidosa
pela respiração ritmada do teu sangue quente
pela pátria de um único passo teu
melodioso e diciplinado
pobre plebeu europeu,
mas digno da minha hoje condição de mártir...

Argentina que me roubou o ar,
dos bons ares de quem me convida
Quando eu nem sabia o que era ar
e que depois,
a falta desse ar me produzira.




24 March 2008

AMOR PERDEDOR


Amo os números díspares
amo o canhoto
amo o olho de vidro;
amo aquele que não reconhece as cores
e nem sabe no mundo
qual é o seu lugar
Amo aquele que ainda está ignorante de si
Amo-o, porque o amo
Seriam longos e tediosos dias
de explicação para que alguém entendesse
porque eu amo a quem nunca se superou
a quem conhece a trincheira e não o glider
Amo os fracos
e a covardia traidora dos fracos
Amo-lhes as justificativas do porquê-não
Amo-lhes os olhares interrogativos
de rigorosa dúvida
Amo-lhes porque são
feitos da minha matéria
assim como também amei a minha matéria
da minha matéria primeira
Que eu deixei para trás
naquele passado perdedor
onde o estorvo é que era a integridade
Amo a vida do canhoto perdedor
a vida do olho de vidro perdedor
a vida do fraco perdedor
e por amá-las tanto
recebo delas um amor
de olho de vidro,
um amor fraco e perdedor
Amor perdido, pois.




23 March 2008

A LOUCA DE PEDRA


Haverá uma louca de pedra
em cada caminho que trilhares
A louca de pedra te falará dos males,
Das virtudes dos teus males
e das benfazejas conseqüências
que teus males haverão de te adornar
Quando dormires, doravante
Terás o sono intranqüilo das caricaturas
da louca de pedra
Teu sonho será pesado em balança
de tonelagem
e teu amanhecer será insípido e triste
sempre emoldurado pela louca de pedra
que te acompanhará
do chuveiro à volta do trabalho
Tudo o que disseres
será confundido pela fala da louca de pedra;
Porque neste dia que antecede abril
quando as folhas das árvores

já temem pelo desfalque,
quando os ventos já preparam

seus brotos de vento frio pelos ares,
quando os céus da noite

já capricham no azul,
A tua alegria te virou o rosto
e te partiu em dois
O teu lado esquerdo,
que te aquecia o dia
e que te amornava a noite
resumiu-se,
Teu lado direito, agora chora
assistido pela louca de pedra
Que te vê triste, e não te consola
porque nem ela, a si mesma, se consola,
posto que é louca,
e como a matéria que te alimenta,
também de pedra.


SERÁ


Tenho sofrido tanto
e no entanto,
as multidões não percebem
Agora mesmo será Natal
serão luzes vibrando por fora de mim
Agora mesmo será Carnaval
serão corpos e sons por volta de mim
Agora mesmo será primavera de novo
As luzes da primavera
os cheiros da primavera
estarão fora de mim
Neste outono ainda quente
Neste dia que deveria ser de leveza e paz
Tenho sofrido por dentro
a dor inicial da formação das pedreiras
O que é meu, não há
O que me restou, será.


19 March 2008

POEMA DA INSATISFAÇÃO


Eu estava à janela
Quando a matilha de cães passou
Nenhum ruído
Parecia que desfilavam
na procissão lúgubre dos santos afogados
Era um silêncio de grossas patas
Mortifiquei-me
Se nem eu,
na minha solidão de ar e pensamento
consigo me arrumar em tal dignidade.
Se eu fosse o latido do cão
Um vulto que desfila à volta da minha imagem...
Mas sou esse punhado de insatisfação
Esse montinho de peso
Esse grito desvigorado de tão covarde
Sou o processo, e não o fato.


05 March 2008

DESPERTAR


Haverá um dia em que eu acreditarei em ti
Tu estarás morto de sono
e murmurará algumas palavras lentas,
Eu aplicarei meu ouvido para escutar bem
que essas tuas palavras antigas me significaram
Então sorriremos
Tu, já dentro do teu sono
Eu, na convicção extrema das tuas palavras
a me despertar.

MULHER DE COSTAS


Eu sou uma mulher de costas
Eu sou uma mulher que não faz pão
não remenda meias
Meu ofício é me ocupar com a colocação das palavras
e assentar os sentimentos dentre elas
Posso rir, que estarei ainda assim suavizando
a vida que me deram
e se chorar, nada mais restará do que um punhado de palavras
escritas, jogadas para quem as ouça
Nunca serei como as outras mulheres
e eu lamento profundamente esse acontecimento
O que mais desejaria agora
seria poder tratar da trivialidade das coisas que me cercam
com a naturalidade de quem fala alto
e de quem se queixa do amanhã
como se o amanhã fosse esperado e certo
Há em mim, no entanto,
uma angústia de mulher
e uma súplica de mulher
que mulher nenhuma conhece
porque sei que o amanhã é duvidoso
e sei que o hoje é breve
Estou de costas para a a normalidade da mulher
e para a distração
Não quero e não devo,
mas eu me maltrato.


03 March 2008

POEMA DA MELANCOLIA


Tivesse eu uma pátria
essa pátria seria de uma edificação de mármore
Pois é indiferente a vida
e é fria a paisagem
Lá fora tem quarenta graus
Aqui dentro, a vivacidade das cinzas.


02 March 2008

PARA QUANDO EU FOR FELIZ


Quando eu for feliz,
e alguém me perguntar se sou feliz
se algum dia serei feliz,
Abaixarei o meu rosto,
que estará ruborizado
A felicidade dá vergonha na gente
Felicidade demais então, intimida a gente
A gente não tem palavras
a gente emudece
e os sinos tocam bravamente por dentro
Para os outros, o que é covardia
Para mim é coragem.

POEMA DA PORTA DA FRENTE


Quando vieres, venha pela porta da frente
Os ratos de bueiro se afastarão
As libélulas milagrosas se chegarão
para adornar a sua entrada
na praça do meu lugar
Os trinta e um meninos de rua por certo assobiarão
aquela canção de vida
que eu cantei numa tarde triste
porque era uma tarde quente
quente de ar e quente de sensilibidade
Talvez a porta da frente se abra como um abre-te sésamo
Contudo, estou confiante que já esteja aberta, revelada
Como meu coração adulto também está revelado;
É um coração que tem uma única porta;
a porta da razão na semelhança da simplicidade.
Quando vieres, não bata à porta,
Talvez não haja porta,
ou talvez ainda,
como meu coração adulto,
ela já esteja arrombada.

01 March 2008

POEMA DO DESCUIDO


Primeiro eu escolhi um bom pasto que me pastasse
Eram mil hectares de passos
Andei dois mil
Foi ida e volta pastando sobre um piso improdutivo
Quando a gente caminha, a gente põe a cabeça prá pensar
As idéias também pastam no interior da inteligência
O que eu penso, eu remastigo à exaustão
O que eu falo, eu pronuncio em reflexão contrária
Nunca me fartei de felicidade
Nem a felicidade se afeiçoou a mim
Tudo o que subsiste em minha vida é o ciclo da pastagem
É campo grande, cercado,
e quando vem a possibilidade de algum escape
é preciso dar um fôlego para o regresso da jornada
Quem cansa de viver é desprezível
Quem vive por viver é ponderado
Eu vivo no ponderado e me descuidei do que é viver.