27 October 2007

PORTA


Vê esta porta?
Estava fechada eu eu tentei abrir-lhe
Abri-lhe pela metade
Vê esta porta agora?
Fechou-se por completo
Nem sempre o desejo completa a cena
As vezes o desejo é que é a porta
Que a gente escancara e pensa que não se fecha
Fecha-se.

24 October 2007

CECI

Ah, que dor é essa de se ter uma alma tão minúscula
Um contentamento tão breve
Uma palavra tão dura
E um sentimento tão leve...
Salvo as pessoas que conheço
Só eu sofro por ser assim tão rude
Sendo comigo mesma, incompleta,
E com os outros, honesta

19 October 2007

AS BROMÉLIAS DE ZAZÁ


Zazá falou-me um dia das bromélias,
Mas as bromélias de Zazá
Recusaram-se a florescer
No chão de minha casa
As coisas também têm vontades,
Se as queremos dominar
Primeiro eu quis dominar o mundo
Este me dobrou
Depois eu quis modificar o tempo das coisas
O tempo me modificou
A ponto de me deixar escarnecida
Com o que fui
Finalmente,
Quero dominar as poucas coisas que faço
E que estão ao alcance de minha mão
Minha mão estacionou o carro da passagem
Domino-me, a mim mesma
Mas não me domino em nada
Quero ser e já desejo estar
Farto-me das bromélias do vizinho
Desvirtuo a rosa
E me encontro da forma mais sublime
E ágil da existência
O que eu sou, eu não domino
O que serei, me dominará.

Essa é uma das músicas mais bonitas que conheço, letra e música, que me enternece, que me toca, e frequentemente, quando a ouço, me faz chorar.

14 October 2007

PAREMOS


Confesso-me aqui, pequena
Cruel e venenosa
Porque eu haveria ser a doçura do seu sonho
Se não há mais nada?
Terra é terra
E o vôo da gaivota é só um alçar de asas
Quero ser melhor do que sou
Mas o mapa que me predestinaram
São as linhas finas da palma da minha mão
Não se mexem, nem se desdobram
Páro por uns instantes e não insisto mais
Parei-lhe também,
Parem, todos os que nos vigiam
Paremos, os vigiados que somos,
Paremos, estancados que somos,
Estanques então, paremos.



13 October 2007

CHUPAR LARANJAS


Se eu tivesse hoje uma bacia de alumínio,
Com uma dúzia de laranjas baianas,
Viçosas, frescas,
Me sentaria agora no degrau da porta
E com a faca ingênua da minha infância ingênua
Iria tirando-lhe a casca à roda da lâmina afiada
Sem machucar-lhe, e sem que fita lhe quebrasse
Para depois rodar o laço alaranjado para o alto
Desfiando rapidamente o abecedário
A, B, C, D... até que a fita se soltasse,
E eu pudesse saber a inicial do nome do meu amor
Rodasse o que rodasse
Não houve nome que se sustentasse
Nem houve única uma letra para me levar,
Foi bom chupar laranjas,
Sob a pele translúcida e branca, sem falhas
No entanto,
Sentada hoje no degrau da porta,
Não havendo laranjas,
Há em mim as marcas.




12 October 2007

FALE COMIGO


Fale comigo com a delicadeza das dobraduras do papel de seda
Com a paciência dos homens do campo
Que plantam a flor que não conhecem
E crêem na flor
E com a sabedoria dos pardais
Que aprenderam logo cedo a viver o único dia, vez por vez
Fale comigo como se temesse quebrar os cristais
E tivesse a leveza da entrega da sorte
Ao derramar-se para o fluxo da vida
Fale comigo como se eu fosse a santa do altar
Aquela que veste um manto azul
E tem os olhos cegados de luz;
Azul sem sentido e sem visão
Oca na sua desumanidade
Fale comigo como as cascatas falam às pedras que as suportam
Segura-me no seu falar, apoia-me,
Sustenta-me
E deixe-me transbordar o que há de mais intrínsico em mim
Que é a minha confusão de ser o que não sou,
A minha louca procura por mim mesma
A minha perdição de pertencer à realidade
Fale comigo, como se eu fosse
Aquela que não compreende
Não vê,
Não se repete;
Mas vive, ao seu lado,
Ainda que sem saber.


08 October 2007

POEMA DA ETERNIDADE


Vamos falar besteiras, meu neguinho
Vamos falar de nada
Vamos ficar assim, de mãos dadas
Olhando a escavadeira procurar onde tem chão
Vamos tomar sorvete de ameixa,
Porque se ameixa há
Então para nós, tudo haverá
Haverá em nós um violino por detrás do bambuzal
Que toca um samba ao invés de trote
Que muda a direção do vento de lugar
Vamos fazer besteiras, meu neguinho
Vamos tornar o circunflexo das nossas sobrancelhas
Em linhas suspensas de literatura de cordel
Leves e finas,
Cheias de lirismo do mote que há da vida
Vamos falar engraçado, meu neguinho
Vamos falar enrolado
Porque nossos olhos se entendem
Mesmo quando a nossa fala está desembrulhada
Vamos fazer de conta, neguinho
Que a vida é agora
E que o amanhã é o vidro do tinteiro
A gente sabe que tem em algum lugar,
Mas não existe mais
Vamos, neguinho,
Vamos fazer amor de madrugada
Porque o dia está quente
E é preciso preparar a madrugada
Com seu frescor e seus defeitos
Que só o destino sabe onde não tem
Vamos morrer juntinhos, meu neguinho
Naquele dia em que não houver para nós nenhum presságio
Em que estivermos mortos de tanto viver
De tanto vasculharmos
E só encontrarmos a nós dois, neste oceano insano
Que foi a vida para nós, neguinho
E podermos nos dizer que foi uma vida e tanto
Vamos sonhar juntinhos, meu neguinho
Sonhemos de brincar de presente e de passado
O passado, joguemos fora depois, como se fosse traste
E o presente, neguinho,
Este,
Levemos conosco para a eternidade.


07 October 2007

PRELÚDIO DO AMOR À VIDA


Mesmo naquele desassossego, eu me traíra
Toda porta que havia
Eu me cuidava para que à toa, não se abrisse
Nem se escancarasse
Para mim,
Era preciso haver a sustentabilidade das coisas
Era preciso fazer todo dia o que me doía ser feito
Limpar os móveis,
Cultivar a salada no quintal
Usar quantos perfumes fosse necessário
Para manter esticados os sorrisos falsos
Os meus
E os sorrisos de colgate que eu precisava instigar
Mas numa manhã em que havia sol,
Como qualquer outro dia
Batia um vento, lembro-me do vento
(Seria ele a marca-régua do cotidiano?)
Um tiro soou aqui dentro
Vindo do exterior
De terras tão próximas que eu já havia perseguido
E nunca, de fato, fincado bandeira
Não me matou
Nem me deixou amolecida diante da amálgama da vida
Ressuscitar dentro do tempo
Eis a tarefa trabalhosa e útil
Todo dia aqui faz sol
O vento desde esse dia em diante, em mim,
É bom, e não é breve.


03 October 2007

TIA CARMEN


Minha madrinha foi-se para o universo dela há pouco tempo
Não foi uma madrinha de porta a porta

Não me carregou no colo,
Se me cantara canções de ninar, eu também não soube
Duas mulheres, entretanto

Cada uma na sua perplexidade
As minhas insatisfações de mulher

As minhas dúvidas de acerto e erro
Os beijos forçados que dei
E aqueles que eu quis dar, escancarados
Teria ela dado e também escancarado suas insatisfações?
Uma vez vi minha madrinha tomando banho
A pele tão clara, os cabelos curtos e grisalhos,

Mesmo nua, o que mostrava,
Era a cara amarrotada de tanta vida presa
Os caminhos exíguos da rota certa de todo dia
Os calçados baixos, rasos, a poeira nos pés,
Os brincos minúsculos de ouro português,
Feios, de tão avermelhados

A fala que se queixava, também avermelhada de estreiteza
Quando tomo banho,
Invoco-lhe a imagem
Cadê os brincos, madrinha
Cadê a blusa de flanela?
Cadê o curto do seu cabelo que não vingou em mim?
Mulheres, entretanto,
Ela, na obscuridade
Eu, na paz do luto que esquece
E ainda nos perdoamos,
E nos compreendemos

Por dentro de nossas ausências.


02 October 2007

POEMA DE DESAMAR O AMOR


Quero me dar um amor
Dos mansinhos
Pé de pelúcia
Pata de lã
Não há amor mansinho neste mundo
Deve haver um onde a cotovia perdeu o rumo
Lá não passa ninguém
Quando cotovias perdem o rumo
É porque o mundo já se acabou
Amor mansinho é prelúdio
Amor de verdade,
Feio, briguento, puxento
Grudento
É epílogo
Amor de verdade
É fim de amor

No fim do amor,
Não tem amor,
Tem mágoa
Magoada,
Desamo o amor


01 October 2007

POESIA É PASSARINHO


Vem aqui, passarinho
Deve haver algum alpiste na concha da minha mão
Se eu fosse um alçapão
Eu lhe engaiolava de longe
Se eu fosse um homem de circo
Lhe ilusionava a visão
Se eu fosse a moura torta
Lhe dava um banho de sal
Sou só poeta de ais
Lhe chamo, e você não vem
Vem passarinho
Responde .
Se meus versos não lhe prendem,

O que lhe prende, afinal?
Nem prenderam um amor que tenho
E nem a mim eles amarram
A dor que sinto não prende

A mim, nem a você, que parte
Não me gruda, não lhe cola
No final, só nos liberta

Poesia é passarinho
Nem bem a temos, escapa.