31 October 2006

DELÍCIAS DE UM AMOR


Dedico este poema ao meu leitor que ainda continua anônimo, e que me deixou um comentário para que eu escrevesse COMO ARRUMAR UM AMOR.
Como arrumar um amor eu ainda nao sei, mas como desfrutar dele, aí vai:




Ah, as delícias de se gostar de um amor
A pele branca a percorrer como em viagem
Sorriso grave, contundente e alargado
Em meio às febres e aos tremores adiantados
As convicções do amor,
As cruzes que o ventre cola
Nas partes mais secretas vindo à mostra
As lonjuras, agora vivas e fatigadas.

Ah, as delícias de se gostar de um amor
Não há cama que gema
Nem lençol que arrepie
Há prazer somente entre a minha noz acastanhada
E os pêlos desse amor,
Que igual à corça encantoada,
Eriçam de dor,
Dor de carne,
Que dói e dói,
Enquanto não se baste.


30 October 2006

O MELHOR DOS DOIS MUNDOS




A primeira lembrança que tenho é a de um berço e eu lá dentro. Calculo que tivesse meses, o berço era de madeira escura e tinha umas grades também de madeira, torneadas. Isso bem pode ser fantasia minha, porque me lembro do berço passando de irmão para irmão conforme iam nascendo, então não é de se espantar que o móvel só mudava a criança, sempre armado e habitado. Imaginar-me lá dentro é coisinha fácil de se fazer.
A outra lembrança mais longínqua, essa sim, não poderia ter sido devaneio, tenho detalhes da cena captada pela minha memória. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos, estava sentada no degrauzinho de uma casa de quintal estreito, fazia frio e era de manhã. Lá estou eu quietinha, sozinha, vestida de um casaco de lã verde pistache, casaco esse que minha mãe me deu anos depois e que eu ainda conservo dentro de um papel celofane transparente; ela guardava uma peça de roupa de cada filho já antecipando um dia a nossa saída de casa. Mulher preparada, minha mãe.
Verde pistache, de gola larga e arredondada, todo chapiscadinho de marrom, vermelho, amarelo, uns azuis de nuances diferentes, botões escuros de osso, apenas dois botões, largos, mas que fechavam bem o meu corpinho. A janela da cozinha dava para este quintal, e a cena é: Eu, euzinha, ouvindo de lá de dentro uma música que tocava, que eu ainda não sabia qual era, hit do momento certamente, e hoje todo mundo sabe, “Michelle” , dos Beatles.
A música tem uma melodia nostálgica, batida e marcada e um trechinho assim, em Francês: “ Michelle, ma belle, Sont des mots qui vont très bien ensemble, Très bien ensemble". Uma música triste, um recordar também tão triste. Eu, quietinha e acocorada, escutando o som metálico, o sol frio não esquentando, sozinha, já nessa tão tenra idade, começando a praticar em mim o que faço hoje, e sem o menor pudor. A meditação, a abstração, o isolamento, o não fazer nada, olhando para fora, só que vivendo para dentro.
Por isso, acredito firmemente; nasci poeta.
Meus caros amigos que me lêem por certo hão de me julgar da forma mais vil quando digo que sou poeta. Às vezes quando digo assim, justificando minha maneira displicente de me relacionar “Não liga não, sou poeta”, vejo em alguns olhares uma certa apreensão por eu estar ficando louca, demente, pirada ou drogada. Como se se nomear “poeta” fosse o mesmo que dizer que “Sou Napoleão Bonaparte”. Louco, e de pedra.
Mas ser poeta é ter um instinto natural, assim como ter um dom especial para ser pintor de paredes, ter prazer na profissão, escolhido para ajeitar a tinta, misturar as cores, molhar o rolo prensado algodoado e macio sobre a parede antes sem atrativo ,para trazer a nova cor à vista, e assim, em movimentos verticais de sobe e desce, ir se imbuindo da nova cor, entrando nela e atapetando então o que não se queria por um novo tom, que será um novo tempo para essa parede e os habitantes que coadjuvarão com ela.
Acho que não se constrói um poeta, nasce-se assim, com uma cisma por dentro. Cisma é ter-se um questionamento constante sobre o mundo em que vivemos e o mundo que vive dentro da gente. Os dois mundos não batem, nunca se completam; são absurdamente opostos. O poeta encomenda uma coisa e mundo entrega outra. Por isso, tanto lamento, tanta insatisfação. É como se viéssemos com um defeito inconsertável para esta vida de aceitações e renúncias. Não há ferreiro que dê jeito, psiquiatra que cure, benzedeira que afaste. A angústia é nossa, mesmo se o mundo parecer estar certo para tanta gente, e incrivelmente, olha que está!
Viemos com os olhos de ver errado, e mais ainda, os olhos que vêem o que ninguém vê.
Cai uma folha da árvore, passa batido para todos, o poeta capta o momento em que a folha se desprega do galho, vem voando entre assustada e bailarina, aqui e acolá, até despencar no chão. Pluft. Poesia.
Para o poeta a folha não deveria cair da árvore. Ou deveria cair. Ou deveria cair e não cair. Nisso, entre o relacionamento da árvore com sua folha, o momento de se separar dela para sempre, a surpresa da folha ao ser desprezada e rejeitada abruptamente pela árvore, eis o mistério para o poeta. Os olhos das pessoas não-poetas enxergam ou não enxergam a folha cair. Para o poeta entretanto, é um fascínio único e que acontece todos os dias, em todos os lugares, mas que ele captura com seu olho interior e exterior, congela, delira, enquanto acredita que foi a primeira vez que viu algo despencando assim, uma simples folha travestida de um verde de asas, um paraglider montado em natureza, um anjo da seiva.
O poeta é um transformador, um modificador das coisas. Coisas corriqueiras do mundo não são coisas, são um spectrum de oportunidades de se ver ao contrário e de forma exclusiva .
Ouve-se uma frase em meio à muitas, o poeta separa a frase, anota no seu inconsciente, mais tarde ela vira um verso ou um poema inteiro, estimulado por algo que se ouviu e já nem se sabe quando ou porquê.
Se o poeta não escreve, ainda assim nao deixa de ser poeta. Seja por falta de papel ou lápis, oportunidade ou ocasião, mesmo assim a poesia continua a exercer nele a sua regência, pois sendo dinamica, não espera hora nem lugar. Por isso muitas vezes, na fila do ônibus, em meio ao trânsito, bem no início de uma reunião, é comum reconhecer o poeta que está poetizando só em pensamento, impossibilitado ali de colocar abaixo os versos que acaba de fazer. Imóvel, olhos vidrados, atemporal. Daí as senhas próprias. Faz-se um verso sobre a mulher obesa que atravessa rua, mas como não se pode escrever ali, naquele momento, registra-se no cérebro " mulher obesa" , e um dia, quem sabe, aquela figura ou o sentimento da obesa por ser obesa vai constar em algum poema, já destituído de sua motivação inicial. Um bom poeta não lastima poemas perdidos. Há sempre uma nascente a jorrar poesia; ele sabe que outros virão.
Veja bem, o poeta não vive em transe, o transe é o mundo exterior que se nos apresenta.
Não confunda o bom poeta com o poeta bissexto. Poeta bissexto, bem denominado por Manuel Bandeira, é aquele sujeito que em raros momentos de profunda dor ou solidão, escreve um poema absurdamente bom, e ali a poesia se basta. Ele pode tentar, tentar, mas ela teimosa, não volta. O poeta bissexto é um desafortunado. Vive igual a todo mundo, se tem a angústia a apertar-lhe o peito, espreme o espírito e daí pode sair algo belo.Uma vez liberado o sentimento, volta rapidamente para ao mundo exterior, se esquece da poesia e ela fica ali, esperando outra oportunidade para voltar à tona. Pode voltar nunca mais, desesperançada de estímulos. É sempre uma pena.
E há os poetas desiludidos do amor, ou ao contrário, repletos de amor. Ama-se alguém doidamente, faz-se um poema, perde-se esse alguém, mais poema, mas agora de frustração. Esses não são poetas de verdade, são os " poetas da oportunidade" ; os poemas dos amantes são todos iguais, não importando estilo, idade ou o objeto amado. Lê-se um e já se leu todos. Falam de vida, beijo, saudade, mas se a ordem dos versos fosse alterada, nao se perceberia nada. Pode-se começar a ler do fim para a começo, do meio para o início, tudo seria a mesma coisa. Esses iludidos ou desiludidos poetas também têm a sua importante função, consolam-se na sua poesia e pode ser que atraiam de volta o ser amado; nunca se sabe se o amado ou amada se sensilize com a poesia. As vezes pode ser um tiro no pé.
O poeta de verdade não precisa do ser amado como objeto , a poesia é a amante, a dedicada companhia, os quatro pilares de sua sustentação. Fala-se da lesma que subiu na folha, da mosquinha verde que pousou por cima da sopa, do homem taciturno que bebe seu café lendo o jornal. Vive-se a poesia como se vive um credo. Fiel, absoluto, inerente e próprio.Não se sabe onde começa um e termina o outro. Poesia e poeta são unha e carne, irmãos siameses, não traz o ser amado de volta por causa dela, o ser amado é mais um pretexto para ser objeto da poesia.
Mas o mundo real é mundo também para nós poetas. Vemos o encardido das meias, ouvimos a buzina estridente do carro lá em baixo, nos aborrecemos com o calor e lastimamos o frio. As pessoas ainda têm dentes amarelos, os passarinhos deixam muita sujeira no vidro dos nossos carros, e às vezes nos pisam nó pé sem dó. E sem desculpas.
O mundo fora do poeta é um mundo mudo. Parece ser uma pintura sem vida e sem suor, sem carne e sem espírito. Todos os dias, acordamos, a rotina cai sobre a gente, igual cimento batido. É preciso comer, dá-lhe supermercado, é preciso vestir alguma coisa, corre-se em lojas e cumpre-se a obrigação de comprar o necessário, é preciso cortar o cabelo, senta-se na poltrona do cabeleireiro e torce-se para se acabar logo com isso.
Porém, é preciso entender que o mundo exterior sustenta a poesia. Sem ele, seríamos seres flutuantes e diáfanos, ficaríamos vagando na imensidão sem onde encostar a cabeça. Não acordaríamos nunca, não nos obrigariam a fazer crediário nem a consultar o relógio para o próximo compromisso. O poeta sem compromisso é um poeta morto. Jamais veríamos a luz do dia e não dormiriamos à noite. Não precisamos do tempo nem de espaço, nos bastamos.
Mundo exterior é mundo cão, mas é bom.
Gosto de acordar cedo, tomar meu banho sem pressa, me revestir da rotina do dia, fazer café, consultar a despensa, verificar o que preciso deixar pronto para os outros que acordarão mais tarde.
Passeio pela casa, ajeito um cinzeiro, arrumo as revistas, coloco o controle remoto no lugar, levo os copos usados para a cozinha, lavo-os com uma alegria juvenil como se estivesse a escrever um conto, me sorrio em frente ao espelho, escolho meu colar de contas enquanto penso no dia que vou ter, nas aulas que darei, no livro que preciso comprar.
Mundo exterior é necessário, é básico.
Gosto de sentir que tenho um pé cá e o outro, lá.
No “cá” da poesia o pé flutua, rindo, igual às folhas altas da palmeira que cultivamos aqui em casa, que o vento sopra como quer. O outro pé está metido numa terra poeirenta e rasa, firmado sobre o chão, como que se marcasse a existência sobre o maior da vida. A subsistência, a rotina, o tédio, a competição, inimizades, o tráfego, o burburinho do bar que nunca fecha, as promoções on-line...
Bi-seres, bi-gente, bi-tudo, somos poetas, que vemos, que sentimos, e ainda mais, que nos mesclamos a vocês, gente daqui e gente de verdade.
Se por acaso você estiver numa conversa boa com um poeta sobre a última moda ou sobre o resultado da eleição, pode ser que de repente, sem mais nem porquê, você descubra que já está falando sozinho e o poeta se foi. Se foi como fumaça em meio ao rodamoinho, partiu para dentro de si e se minimizou a ponto de voltar a ser aquela menininha com frio, numa manhã ensolarada no quintal, vestida de verde pistache, escutando atenta aos sons nostálgicos que vinham lá de dentro e já sonhando quem sabe o que ao som de Michelle. Dos Beatles. Pra quem não sabe, década de 60, um tempo bom.

ALGUÉM ME LÊ


Nesse momento, alguém me lê
Sinto que alguém me lê
Pois o meu espírito treme em marteladas
E a minha alma traduz o sentimento em sons
Quem me lê, a mim já não importa
Importa que eu escreva, que eu reproduza
Um sentimento meu e que alguém, que eu já nem sei,
Alguém que nem conheço,
Agora usa
E faz da minha dor,
Como se fosse a própria.

29 October 2006

MINHA PELE



Louvada seja a minha pele
Num dia, cálida, noutra vez, grosseira
Que me protege dos demônios que me cercam
E me aconchega com o amor que ainda tenho

Onde arranjaria tamanha fonte de defesa
Não fosse essa couraça de cetim e estopa
A armadura de fel
E o manto de cristal
Que ostento e exponho,
E que ainda me sustenta?

Louvada seja, pele minha, por ser mais eu que eu
Que ainda não sei me defender do mundo
Não sei do malefício,
Só sei da dor do mal
Não sei do golpe
Só sei do frio do punhal
Louvada seja, pele minha,
Que me conduz também à santidade
Sei do bem que há em mim
Se não sou santa;
Sei da insanidade em mim
Se não sou parva.

VOTOS


Fiz uns votos monstruosos de castidade
Castidade assim, na minha idade
É o reverter do mundo em muitos graus
Não há sexo prazeroso que não mova
Nem a vontade doida que não doa
Castidade de espírito é o que destoa
Nessa minha pele firme e amorenada
No meu sorrir falado e sussurrado
E no meu porvir
Cheio de luzes
Igual ao brilho à noite de uma cidade
A inocência é santa
Eu sou a liberdade.
Bendita liberdade
Que liberta o monstro
Que me feriu e me impôs a castidade.

21 October 2006

POEMA PARA ESQUECER UM AMOR


Para esquecer um amor
É preciso jogar garrafas ao mar
Com uma mensagem de desespero
E um pouquinho de ilusão que alguém a encontrará
Para esquecer um amor
É necessário reza e mandinga
Um pouco de feitiço
Um pouco de oração
E muita confiança
Em busca de socorro.

Para esquecer um amor
É preciso abstinência e solidão
É preciso lágrimas
É preciso choro compulsivo
Para esquecer alguém
Que não me amou.

CASQUINHA DE AMENDOIM


Porque tudo me fere
Vou entrar na casquinha do amendoim
E enxergar o aqui fora sob o vermelho névoa
Com um medo de tudo
Com um medo de mim
Lá dentro não deverá haver futuro
Nem quando, nem o quê, nem o que será
Vermelho dá a coragem à um poeta fraco
Ou dá força à um coração arrebentado
Só há uma coisa a se fazer na solidão
Reunir coragem
Imitar o grão
Revestir-me da pele que não tenho
Uma pele fina, acetinada, etérea
E bem melhor que a minha exposição
Não tenho mais pele,
Sou coração vingado,
Sou ferida aberta
Sou o reflexo da própria rejeição.

19 October 2006

O CONHECIMENTO DO POETA


Meu bem me diz que me falta conhecimento
Que conhecimento eu deveria ter
A não ser a faculdade de saber
Que somos isso?
Um montinho de ossos,
Um tanto de matéria
Dois olhos ávidos por viver
E um sentimento nas mãos
Que ora é poesia
Ora é resignação.

MUNDO BOLA


Que judieira, meu nego,
Quando lhe pensava perto
Lá foi você para o mundo;
Mas o mundo é uma bola
Vira, vira, roda, roda.
Se eu fosse a rainha louca
Estaria lhe esperando
Quando passasse de novo;
Mas sou mulher de coragem
Também estou me arribando
Para conhecer de tudo
Nos caminhos que eu andar
Haverá curvas demais
Quando passar por aqui
Eu já não estarei mais

18 October 2006

FALAR DE DORES


Há vários tipos de dor; dor física, como dor de dente, dor de cabeça, dor de estômago, e dores mais cruciais, como deve ser dor parto ou dor rim, que dizem, as mais terríveis. E há as dores vindas do coração partido; dor de cotovelo, dor de rejeição, dor do abandono, dor de complexo, de culpa, de obsessiva loucura, dor de isolamento, dor de solidão.
O dicionário traz:
do Lat. Dolore s.f., sofrimento físico ou moral; mágoa ou aflição; pesar; dó; condolência, piedade, remorso; (no pl.) manisfestações dolorosas que precedem o parto. Com – de cotovelo; ciúme, inveja, despeito
De todas as dores, não há como classificar qual doa mais no momento em que sente dor. Dor é dor, pequena, grande, lancinante, contínua ou casual. Sentir dor é o mesmo que estar na ausência do bem estar. Bem estar é bom, mal estar é dor.
Há dias em que acordamos sem sentir absolutamente nada em nosso corpo, mas nossa alma está em dor. Dói tudo o que pode doer dentro de uma alma. E do que é feito uma alma? De gás? E gás dói?
De sentimentos, talvez. Mas sentimento tem matéria pra sentir dor? De personalidade. Não, personalidade é um conjunto de traços e vivências, não pode ali residir sofrimento em forma de dor.
Então, como classificar a dor de estarmos em pé, ou poderia até, estarmos deitados ainda, os olhos se abrindo para o dia após o sono, e lá por dentro, dentro de nós mesmos, além do coração e vísceras, residir um protesto de lamentação, a qual chamamos, dor?
A dor nada mais é do que uma campainha avisando... “ Tienes um problema”. Gosto de dizer isso em espanhol, porque me parece que nessa língua basca o aviso vem mais leve, mais amaciado. Disséssemos em nosso Português: “ Você tem um problema” , Vixi Maria, a coisa pegou. Espanhol tem essa qualidade de tornar tudo mais musical e soft. Então se o aviso vem: “ Tienes um problema”, a gente já começa a se perguntar onde o problema dói. Se fosse físico, seríamos capazes de identificar a região da dor. Parte de cima do ser humano , há muito que doer, o coração, estômago, esôfago, rim, baço, isso nem falando de pescoço, garganta, dente, laringe, faringe, depois a cabeça com seu complexo neural.
Parte de baixo, sobrou muito pouca coisa a não ser os órgãos genitais e as pernas, que quando doem, sabe-se porque, é só consultar o cérebro sobre as atividades das ultimas 24 horas. Pode ser gota ou fibromialgia, a síndrome das pernas inquietas. Doem. Unha encravada dói também, e como dói!
Mas a dor é abstrata, não há uma única descrição para ela que convença uma explicação. Vamos ao médico, ele pergunta: Onde dói? Facilmente apontamos região, o resto é que com ele, que apalpa, puxa, mexe e pergunta de novo: “ Dói aqui?” “ E aqui”? E a gente vai direcionando a dor sob os dedos do profissional, que muitas vezes nem sabe se está apertando muito e a gente grita de dor. Dor do aperto, nem sempre da dor propriamente dita. Daí a fastidiosa pergunta: “ Como é a dor”?
“ Sei lá como é a dor, doutor” . Como explicar uma dor, substantivo feminino abstrato para uma pessoa que talvez nunca tenha sentido essa mesma dor? Dor é dor, pão é pão e pedra é pedra.
Quando eu era criança, e passava as férias na casa de minha avó, havia esse primo, mais velho chamado Afonsinho. Era um milico, trabalhava na Aeronáutica, e uma certa vez, quando eu estava na casa da mãe dele, tia Maria Aurélia, este chegou com um aparelho hi-tech. Com ele media-se a dor.
Todas na sala enfileiraram-se à indiana para medir a própria dor, que era estimulada à base de choques em qualquer parte do corpo, com base na resistência de cada um.
Eram gritinhos e gritinhos, cada um estupefato ao perceber a sua dor exposta aos demais, e a própria fragilidade à prova.
Não quis medir a minha, desde criança temo por estar na berlinda, mas mesmo assim, diante da insistência dos mais velhos, lá vou eu com a mão tremendo e já sentindo os horrores do choque antes mesmo que este se encostasse em mim. Na primeira alfinetada, lancei mão da única coisa que traduz minha dor e até hoje não me larga. Chorei a cântaros. Nada me fazia parar.
Meu primo anunciou solenemente: “ Essa menina sente mais dor do que a maioria” . Pronto; fora ali assinado a mais contundente história de uma vida. Tanto que passei a considerar a dor como uma companheira que não se anuncia como uma campainha, eu era a minha própria campainha. Desse dia em diante, a dor passou a ter pra mim uma conotação relevante. Eu sentir mais dor do que a maioria me elevou a uma condição especial de portadora de sentimentos especiais. Se eu caía e ralava o joelho, a dor passava a ser mais importante que o tombo ou o risco de ter sido mais catastrófico. Era preciso reverenciar a dor, chorar o dobro por ela, cultivá-la, e guardá-la com carinho para o próximo tombo ou escorregão.
Depois, essa dor acondicionada em mim, foi se transferindo, solidária, para o interior do meu corpo, bem incrustada e fiel, e para qualquer momentinho de solidão ou perda, lá vinha ela, poderosa, não para me avisar de nada, mas apenas para me mostrar que ali estava ela, de prontidão, como fiel escudeira de mim mesma. O “tienes algun problema” para mim vinha assim “ Su problema es mi problema”.
A dor com a qual convivi por estes anos todos foi uma dor apenas. Um imenso e lodoso arraial para aonde me refugiei, me arrastei nos sólidos e insólitos momentos de infelicidade, fosse por rejeição, medo, angústia ou solidão.
As dores físicas então começaram a aflorar por sobre o meu corpo, muitas vezes chamada de enxaqueca, outras de frescura para quem não tem o que fazer. As gastrites, as eminentes ulceras, a dor de coluna, a dor no peito, tudo isso traduzindo um sentimento triste e aconchegado de dor de alma ou dor de ser.
De ser parte de um mundo que tem dores. Um mundo que conhece o bem estar, mas vive sob o signo da dor. Há dores demais, sofremos demais. Sofremos por sermos pobres ou sermos remediados, queríamos ter mais. E há os que sentem as dores de possuírem tudo e não possuírem nada.
Sofremos de ambição e da falta dela. Há dores de crianças, dores de adultos e dores nos idosos. As crianças por desejarem atenção, os adultos por desejarem atenção, os idosos por almejarem atenção.
A dor é um vício, um aditivo que nos consome, sentimos dor e não a queremos, quando ela se vai, nos primeiros momentos do refrigério, pensa-se na dor de outrora, e inacreditavelmente nos esquecemos do que sofremos, prontos para outra dor.
Dor é também é chiclete, que se masca, , masca, e não acaba. Quanto mais a mastigamos, mais comprida fica, mais sem gosto, mas ainda dá para mascar, até que o maxilar da gente se cansa e o cérebro diz: Joga fora! Alívio, que bom é ficar sem mascar chiclete depois de tanto mascar!
Com a dor foi mais ou menos assim. Fui mascando, e no comecinho até que tinha um gosto, um atrativo de quem sabia que a dor era uma diversão, acima de mim e superior a mim.
Foi-se o tempo, essa dor de antes hoje já não apela em mim o visgo de antes. Passou a ser uma espetadela insuportável, incomoda, repetitiva e cruel.
Hoje já me despeço dela, a velha e boa companheira, a fiel, a condutora. Mando-a embora como me despeço de uma estação, observando a mudança de fora e a mudança que se dá aqui dentro de mim.Uma despedida feita de paciência e gratidão.
E não sinto dor, sinto alegria, por ter convivido com uma entidade que foi única e importante em minha vida, mas que já cumpriu o seu papel de me aperfeiçoar e de me transformar. Agora, só de vez em quando, e mesmo assim chamarei outro tipo de dor, uma dor novinha, cheia de expectativas, que é a dor do nascimento e do descobrimento do novo.
Há vários anos guardo um trecho de Paulo Mendes Campos, que escreveu para uma certa Maria da Graça: " a própria dor tem que ter sua medida , e é feio, é imodesto, é vão , é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor".
Dor, oh, dor, você foi meu alento e eu, sua paixão,. No entanto, descubro agora, não fomos feitas uma para a outra, como pensávamos. É necessário que não fiquemos tristes, nem alimentando mais as nossas proprias dores. Portanto, vamos pensando que fomos, assim, boas comadres, uma vez amigas, mas agora bem distantes . Uma para lá e outra para cá.
Vamos fingir que estamos de mal.

HORAS DE ESPERA


As longas horas de espera
São os cachos fechados da bananeira do meu quintal
Como casulos selados das bananas que virão
Passa-se um dia, passa-se um verão
A espera é eu me sentar no calendário
Feito o degrauzinho do quintal
Da terra que imaginei
Observar o primeiro rompante trêmulo da fruta
E o meu também trêmulo despertar para a vida que ainda vem

16 October 2006

TCHAU, JACUTINGA

Parei de me preocupar comigo mesma
Ah, como é bom não ter preocupação;
Pois é, amigos,
É porque a jacutinga já voou!

DIA BOM


Quem pode me dizer de um dia bom?
Para se ter um bom dia é necessário
Um livro aberto da mais rica poesia
Um cálice de vinho branco com cheiro de parreira
Um terço de contas falsas para rezar o credo
Uma gota de perfume barato na virilha
Uma cabeça ao vento,
Sem direção nem pensamento.
E o tempo,
Esse senhor sisudo, vestido a rigor
O tempo curador
O tempo amansador
E o bom dia chegará de fato
Me olharei no espelho
E me verei assim, agora transformada
O rosto mais sereno,
A pele mais rosada
Eu saberei então
Que o dia será bom.

14 October 2006

OH, LORD


Oh, Lord, Oh, Lord,
Se a vida é essa coisinha arretada
Que me destinaram ter e todos têm,
Oh, Lord, Oh, Lord,
Por que nascer, crescer e esperar a morte
Pra um momentinho de alegria
Ou de prazer?

Oh, Lord, Oh, Lord,
Vidinha arrebentada do matreiro
A vida perigosa do bicheiro
Lenta morte da vida do cristão
Oh, Lord, Oh, Lord,
Por que fazer de nós esses farrapos,
Pra depois nos tirar da confusão?
A confusão da esperança do dia que virá
E que nunca chega,
Oh, Lord,
Nunca chegará.

DIAS DIFÍCEIS


Os dias difíceis acabaram de chegar
Só agora é que percebi que me preparei pra isso
Nasci, me criei, me fiz mulher
E forte
Só pra esse dia, que chegou.
O que está em mim agora é um profundo sentimento de serenidade
Por descobrir que o treinamento que me foi dado
Gerou tranqüilidade
Ante a face mais aterrorizada da dor
A dor é agora um alento, uma virtude
Um sentimento bom.

12 October 2006

NETWORK OU A REDE DE RELACIONAMENTOS


Rede em Inglês é “net”. Work em Inglês é trabalho, que pode ser qualquer trabalho, o formal, o informal, o de casa, o da escola, mas também, trama, qual a teia que a aranha tece ou a rede que o pescador alinhava, ou a colcha de retalhos que a vovó ajusta. Rede de relacionamentos é “network”. Inglês é uma língua companheira, uma língua que junta as palavras, umas com as outras, formando uma outra palavra, que é auto-explicativa, o óbvio ululante. Outros exemplos: “Batman”, o Homem morcego, “ Eyedrop”, colírio, que coisa mais tosca!!!
Convivo com essa língua quase que diariamente há mais de trinta anos e há mais de trinta ainda me surpreendo diante de uma palavra nova, juntada, abro um sorriso de surpresa e não surpresa, claro que sim, como não tinha pensado nisso antes?
O network é uma palavra que anda sendo dita por aqui e por ali, ouço-a até nos ambientes mais ambíguos, gente que sai falando e pasme, acerta! Outro dia eu ouvi de um entregador de água, desses que andam de moto com uma caçamba atrás, sempre suados. Veio me entregar o galão, e enquanto retirava da carteira o maço de notas a fim de me entregar o troco, foi falando: “ Entrego muita água neste pedaço, fiz aqui meu network”. Pirei. Pirei na batatinha. Em questão de segundos, meu cérebro passou a funcionar em muitos decibéis, repensei sobre minha profissão, meu target, minha hora-aula, meus alunos adultos, muitos deles com tanta dificuldade para certas palavras, as infinitas estratégias de memorização para ajudá-los, meus cursos de reciclagem, quando um rapaz que me pareceu de pouquíssima instrução me solta uma dessa, assim, como quem diz: “ A senhora tem 10 centavos pra facilitar o troco”? Não, o que veio foi: “Fiz aqui meu network.”. Mais uma hora ali, ele falaria tudo, de uma vez: usando o Presente Perfeito: “ I´ve done my network here”. Pronto, eu acharia que o mundo estava certo, e só falando em Inglês com uma professora de Inglês, não, nada mais justo, entregador de pizza, água ou de chinesa. Se eu fosse professora de Francês, talvez ele dissesse com a maior cara de santo: “ Oui, tre bien, merci”. Não me surpreenderia.
Eu também faço meu network aqui. Aqui no meu prédio, no meu bairro, no máximo na compreensão de 20 quarteirões de onde estou e que quase nunca passou disso. Aqui estão todos os que preciso (e não os que precisam de mim, olha isso!). Cabeleireiro, manicure, médico ginecologista, médico oftalmologista, dermatologista, e todos os médicos “ista” que se possa supor. Nem penso muito, sei que há a padaria, a papelaria, meu trabalho, a boutique, a loja de calçado, a farmácia, o posto de gasolina, enfim, uma micro cidade ao alcance de qualquer par de pés. Qualquer par de pés, especialmente o meu par de pés de passinhos curtos e visão limitada, onde o perto já é longe demais, e o longe, inexiste.
Porque ando praticamente todos os dias pelos mesmos lugares, fui adquirindo através do tempo uma categoria avulsa de amigos, que só não os chamo de amigos verdadeiros, porque não há capacidade em mim de parar e travar uma conversa mais profunda sobre a vida, minhas aspirações, traumas, anseios e frustrações. Não porque eu seja preconceituosa, arrogante, ou de nariz empinado. Mas aqui confesso e confesso a mim mesma: Sou tímida. Uma timidez que me faz corar a qualquer sentença que esteja fora do script ou de situações que quando são motivos de risada, rir,em mim me fazem chorar. Não gosto de pagar mico.
Entretanto, ando e vou vendo as mesmas carinhas de sempre, nos mesmos lugares de sempre, e com as mesmas atitudes de sempre. Lembra-me um jogo que minhas crianças tinham e que jogavam pra valer aqui em casa chamado Cara a Cara. Todas as carinhas iguais, porém, estereotipadas, como o negrinho com o mesmo formato de rosto do loirinho, o homem de bigode com a mesma feição da menininha de sardas. As pessoas daqui são assim, o que muda é o cabelo, a mesma compleição facial, mas estão sempre obviamente colocadas, estrategicamente posicionadas para que eu passe e diga, "Bom dia".
Muita gente me conhece, eu conheço muita gente, em geral, não sei o nome deles, em geral também não sabem o meu, eu é claro, muitas vezes sei de suas profissões, pouquíssimos sabem da minha.
Hoje é quinta feira, entro na loja de conveniência, a atendente é sempre a mesma, vem pra me atender, faço o que quero e o que não quero com ela, troco cheque por dinheiro, acho que até trocaria dinheiro por cheque, mas isso seria loucura minha e também muito abuso, e nunca pedi isso a ninguém. Mas pergunto sobre a vida dela, lhe dou conselhos rasos quando pede, arrisco a falar alguma coisa que aprendi que não dá certo, tudo fica no superficial, suspiramos ao mesmo tempo porque o dia está quente, nos despedimos sorrindo, quase sempre é sempre assim.
O frentista do posto me coloca à frente dos demais quando o posto está lotado e eu sorrio pra ele. Só isso. Sorrio e o abre-te-sésamo acontece. Há 15 anos freqüento esse posto, acho que há uma eternidade esse frentista trabalha lá, somos amigos, ou não? Por que ele deixaria um Siena estranho embicar na frente diante de um sorriso de 15 anos que não diz nada, nada implora, nada suplica, nada pede, só sorri? " Passa na frente, minha filha" . Não é corrupçao, é suborno de sorriso. Nao enjaula ninguém.
E assim vai com tintureiro, no cabeleireiro, na vizinha de sala do meu trabalho, nos falamos um pouco, das dores de cabeça que temos, se chove ou não chove muito, e no final, que nos gostamos muito, muito.
O network se expande também para o homem que vende biscui no semáforo, eu passo, ele grita, “ Oi, moça, vai biscui hoje? “ Há uns dois anos, “ vai biscui hoje?” e nunca vai biscui, mas temos afeto um pelo outro, ele me reconhece, eu reconheço nele a familiaridade da vida que me circunda. Nao tenho nenhum interesse nele, ele não tem mais em mim, já conformado por saber que nunca comprei e nunca vou comprar. Business ao contrário. Nao nos inimiza. Nos fortalece.
E há o homem do cigarro que outro dia eu homenageei em um poema meu. Nem imagino seu nome, moço simples, meio aparvalhado, que guarda os carros na rua a troco de centavos. Nunca guardou um carro meu, não estaciono por lá, mas vira e mexe quando o tráfego está parado, conversamos um pouquinho. Nossa amizade começou assim: Eu, fumando com a mão esquerda pra fora do carro para que a fumaça não invadisse muito o interior, cigarro recém aceso, tinindo de tão bem aceso, ele vem, retira o dito cujo dentre meus dedos, sorri pra mim, me olha com muita educação, e diz assim, na lata " Posso pegar”? ante a minha expressão de incredulidade diante de um roubo, sim, roubo ou assalto em plena luz da manhã. Fiquei muda. Isso sempre me acontece, algo surpreendente ocorre, minha reação é de traseira e nunca de dianteira. Não reajo. Ele abaixou o rosto até o meu rosto, deu um sorriso cândido, inocente até, e disse: “ A senhora tá boa, né?”
Sim, eu estava boa, até agora estou, tanto que ficamos amigos de rua. Amigos que não têm compromisso nenhum, onde não há expressões virtuosas de afeição, que não explica nada, que não fere, não conserta situações, não compra presente de aniversário e muito menos racha a conta do bar no final. Amigos de jornada. O dia amanhece um porre, tenho que sair, passo lá, sei da garantia da sua presença, ele me grita de onde está: “ Oi, a senhora está boa, né?” Eu fico boa, instantaneamente.
Já aconteceu de que passando ali, sem que ele me visse, já tirasse um cigarro novinho da carteira, e entregar a ele em meio ao transito, lá atrás um obrigado se esvaindo.
Adoro os meus amigos de rua, eles também devem gostar de mim, somos sorriso e sorriso. Interesso-me por eles, torço pelas suas vidas, quero que se dêem bem, que se sintam felizes. Sinto-me feliz também por conhecê-los, por tê-los feito meus companheiros de todo o dia, por saber que de alguma forma eles também esperam que eu passe, que lhes dê uma palavra de carinho e que eu receba esse carinho de volta também.
Dizem que amigo a gente escolhe, não sei se isso está muito certo. Não escolhi nenhum deles, mas há pelo menos uma dúzia de pessoas que escolheram passar no meu caminho de todo dia, que me enchem a vida de alegria, que apenas com sua presença me dizem que o dia está certo, que as coisas estão correndo bem e que amanhã teremos um futuro.
Meu network está completo, acho que não falta ninguém, depois descubro que o tosador do meu cachorro também sabe jogar o Cara a Cara, me inclui na rede dele e é mais um pra quem eu vou sorrir, sorrir, sorrir.
Viva a vida!

POEMINHA DA SAUDADE DE MIM


Tem chuva hoje sobre meu pé de pitanga
Não há nada a escrever
A não ser uma imensa saudade
De quando eu podia apanhar os frutos impossíveis
Os sonhos que ainda poderiam se realizar
E o meu afeto de todos os dias, ali simbolizado
Mas se chove,
Só vejo da janela a tromba d´água
E a pitangueira, aguada, aguada
Olhando-me também,
E nós duas, tristes e amarguradas,
Separadas,
Pela vidraça da janela
Onde os pingos batem.
Plim, plim, plim...

11 October 2006

AVESSO, APOLÍTICO E PASSIONAL


A política, em certo sentido, é como a poesia
É o profundo envolvimento às vísceras,
De um comprometimento passional
- Embora não admitam os simpatizantes -
Não que não admitam o envolvimento,
Mas que ele seja, assim como a poesia,
Passional.

De outra forma se dá no futebol
A paixão do sentimento tropical
Por quase uma dúzia de fantoches
Que não veste uma camisa, mas a cor
E o selo crudelíssimo do cifrão
- E embora admitam os simpatizantes -
Que o admitem à nação
Que são apaixonados, como é a poesia,
Passional.

O poeta é que é atemporal
Apolítico, avesso à grupos, e afora isso
O mais absoluto ser neutralizado.
Que sabe não ter opiniões encarceradas
Do tipo “ eu sou disso, jamais serei daquilo"
O poeta sabe tudo, pensa tudo
É de todos, tudo é seu, tudo imagina,
Muda de idéia, poetiza, sonha
Idealiza, transforma-se , ilude-se
Mas sabe-se maior que o todo, que a parte,
Que a medida,
Sabe-se um ser à parte deste mundo,
Passional

HOPEFUL

Although all my ways
Have been distorted
For the last hundred years
I am right now still looking over
All the setsbacks I´ve been thru
I still can overview gladness and bliss
Kindness and softness
In all the coming years
I will be through

O CURUPIRA


A primeira vez que ouvi falar em Curupira foi quando era criança e provavelmente num desses contos assustadores de antigamente que tinham um único objetivo: nos mandar cedo pra cama. A cama nos recebia, porém, o medo que se instalava era coisa de doido e a psicologia de antigamente servia não só pra espantar fedelho mas pra instaurar na gente um pavor perpétuo no futuro. Inseguros que somos, aí a fonte de produção dos psicopatas de hoje.
A lenda do Curupira trata do seguinte “Curupira, de”curu", abreviação de "curumi" e "pora", corpo ou corpo de menino. É a "Mãe do Mato", o tutor da floresta, que se torna benéfico ou maléfico aos freqüentadores desta, segundo as circunstâncias e o seu procedimento.
Ele possui várias formas apresentando-se através de uma figura de um menino de cabelos vermelhos, peludo, com a particularidade de ter os pés virados para trás (no rio Negro); ser privado de órgãos sexuais (Pará); com dentes azuis ou verdes e orelhudo (rio Solimões).
O Senhor das Florestas, de aparência andrógina, às vezes muda conceitualmente. Em Sergipe, mostra-se sempre gaiato e, brincando faz o viajante rir até cair morto. Por isso talvez, que ele seja venerado como "espírito cômico". Passando pela Bahia, sofre aí uma transformação completa e não só muda de nome como de sexo, aparecendo sob a forma de "caiçara", cabocla pequena, quase anã, que anda montada num porco.
Depois o Curupira sumiu da minha imaginação e da roda das conversas. O tempo foi passando os contadores de histórias foram morrendo, ninguém se lembrava mais de florestas e mato, a civilização foi ficando mais arraigada em nós, morremos para o Curupira e o Curupira morrera em nós.
A segunda vez foi há tão pouco tempo, o nome Curupira surgiu como batismo de um parque inaugurado as secretas por um prefeito que tivéramos, muito apreciador da natureza. Detalhe, o parque estivera sendo modelado, construído até, às duras penas, sem que ninguém, nem eu, vizinha de frente do lugar, soubéssemos ou imaginássemos.
Havia, é lógico, uma multidão de trabalhadores braçais vestidos de macacão azul e laranja que todo dia desciam do ônibus municipal, embrenhavam-se na pedreira, saiam à tarde com a cara mais lavada do mundo, ninguém desconfiava. Eles não eram secretas, mas comportavam-se como tal. Ninguém se roia de curiosidade. Por
ninguém, eu digo eu, que até hoje não desconfio nem da coisa mais óbvia que se passa à minha frente.
Ao cabo de alguns meses, começa-se a ler nos jornais locais: “ Prefeitura inaugura Parque Ecológico Curupira à Avenida Costabile Romano, nr. tal.” O que? Um parque ecológico e ninguém sabia?
Ribeirão Preto nunca foi uma cidade de parque, muito menos de árvores, de lagos, de regatos, a não ser o nosso velho e asqueroso estreito rio que cruza a cidade, que acho que se chama Ribeirão Preto, ou inventei agora.
O único trabalho que tivemos foi quando na volta do restaurante no domingo, ao invés de virarmos para a direita, viramos à esquerda, contornamos a ilha, um portão de ferro, pasmem, aberto, sim, eu disse, a-b -e -r -t -o , abria caminho para o que foi então a segunda aparição do Curupira para mim desde a infância. Entramos de carro, uma ladeirinha asfaltada, subimos o primeiro lance, nossas queixos só não caíram porque acho que estavam grudados pelo êxtase. Eu fui a primeira quem disse: Jurassic Park!
Curupira e Jurassic Park juntos certamente dão um samba que neguinho nenhum pode imaginar. As cavidades esculpidas da pedreira (basalto, me informaram anos depois, não consigo me esquecer desse basalto) lembravam perfeitamente as cenas do filme da era dos dinossauros ressuscitados. Claro que estou descrevendo um parque que ainda não fora inaugurado, não havia flores, não havia gente, não havia grama, só parque, silêncio e material acumulado da obra recém acabada.
Assustador. Uma arena à frente sugeria um palco, e foi mesmo destinado a ser palco, eu saberia depois. Palco pra dança, palco pra orquestra, palco para noivos tirarem fotografia e minha amiga do peito praticar tai chi uma vez por semana, e olhe que gratuitamente.
Alguém gritou: Tem encanamento! Tinha. Depois ficamos embevecidos por entender que seriam as cachoeiras (riram de mim quando falei cachoeiras, achei melhor mudar pra queda d´água).
O impacto. Assaltador. Árido. Em nada, familiar. E em frente à minha casa!
Aqueles dias seguintes foram de sofrimento para mim, não porque eu ansiasse pela abertura do lugar ao público, não, isso depois eu viria a descobrir que seria um verdadeiro inferno jurássico, crianças com ônibus, ônibus com idosos, idosos com ou sem ônibus, sem falar nas passeatas e lançamento de sorvete.
Não, a simples presença do parque em frente ao sono que me vigiava, ao café da manhã que eu tomava, e lá estava ele ali, grande, quieto, que nem precisava de gente lá, era o meu estado ante aquele gigante em espírito montado e perturbador.
À hora de ir dormir, conseguia evocar a história dos velhos da família, o Curupira vinha, os pés para trás, me assombrar a noite inteira, .
À noite o parque me parecia pavoroso. Não porque eu fosse caminhar por lá, nunquinha, mas porque ele existia ali, bem à minha frente, poucos metros a me afastar daquela imensidão que eu julgava escura, entrevada, seca.
Mas de manhã, nos dias de semana, pessoas trabalhando e seguindo sua vida, aí sim, depois da inauguração, que foi em grande escala, acredite, tantas inaugurações, tantas camisetas por ali, tantas conversinhas pela cidade com a mesma pergunta inicial: “ Você já foi ao Curupira?” Quem foi, foi milhares de vezes, quem não foi, era impelido a ir, até gente de cadeira de rodas chegava cercado de familiares, nunca vi tanta comoção por causa de um parque. Ecológico. Mais que isso, Curupira.
Voltando ao “de manhã” , pois acabei me distraindo com a inauguração, depois de tantas inaugurações, o que era fantástico passou a ser ordinário, e aqui eu explico, simples, comum. Aí, sim, era a hora que eu podia atravessar a avenida, percorrer a ilha gramada e atingir o outro lado, vestida de tênis, malha, óculos de sol e boné, e andar por ali, céu azul e ensolarado da cidade, subir as trilhas, avistar a cidade de lá de cima, me sentar nos banquinhos de cimento, observar as formas redondas ou atléticas dos freqüentadores.
Grande parque, assustador ainda, mas um espetáculo a cada entrada, a cada vislumbre, a cada gotinha de queda d´água, artificial, eu sei, mas ainda, assim despencando frescor nessa cidade quente.
Depois vieram as carpas, muitas negras, poucas alaranjadas, as tartarugas, que a gente gostava de alimentar, as pouquíssimas árvores que cheguei a inquirir porque não se plantava mais, a grama que foi virando um charco até que deram jeito, há bem pouco tempo.
Toda semana, uma novidade, toda semana eu estava lá, plantavam uma florzinha, eu via. Retiravam uma pedra, eu também via, aparavam a grama, eu aplaudia.
Um dia mudei de lá de frente, mas confesso que foi um alívio. O barulho era infernal, até circo e parquinho de diversões instalaram ao lado do prédio, penso que acharam que fosse um complexo temático, eu achei um inferno astral que nenhum Feng Shui dava jeito.
Também a presença da massa rochosa parada à frente da minha janela nunca dissipou a estranheza de percebê-la tão próxima. O silêncio da noite jamais me confortou depois que esse parque apareceu, embora essa pedreira já estivesse lá desde o inicio da Humanidade, com seus macaquinhos e pássaros pequeninos. A inauguração foi o que chocou, o portão é que me enclausurou, as paredes basálticas é que me espremiam para dentro do meu próprio apartamento.
Hoje vou raramente. Tem árvores novas, gente nova, pedra nova, mas as pistas e as quedas d´ água continuam por lá, intactas.
Quando vou, dou algumas voltas nas trilhas, mas gosto mesmo é de me sentar num banco de cimento, olhar tudo sob o sol da manhã, achar graça num empreendimento esculpido por homens, mas é o Curupira que ainda impera, personificado também em cimento num canto de lá, pequenino, feio, cheio de poder, porém. Eu ainda sei, ele é a magia, a lenda, o mito. O Amedrontador.
Sabia que tem gente que acredita em Curupira?

10 October 2006

METIDA E FALADEIRA



Sim, sou metida
Sou arrogante e faladeira
Sou superior e tenho na barriga
Todas as realidades e as realezas
Sim, sou metida
Sou patifeira e feiticeira
Sou armada e encravada
Mulher de briga e mulher de feira
Sou assim por fora e assim por dentro
Só basta convencer meu próprio medo
De ser assim pra todos
E pra mim, inteira.

TESOURA, PAPEL E PEDRA


A pedra quebra a tesoura
Que corta o papel
Que embrulha a pedra;
A pedra tesourou à uma pedrada
O papel cortado e embrulhado
Feito eu, papelzinho amassado
Debaixo do seu poder, tão humilhado
A tesoura que cortava o papel
Se quebrou na curva da estiletada
Sobrou a pedra, no seu canto, indignada
Por não exercer mais em mim o peso da maldade
O papel coitadinho, que sou eu
O amassado material tão desprezado
Foi mais forte, elevou-se à condição de pedra
E agora arremessa todos os seus dardos
Quebra a tesoura, que é você,
E embrulha-se na pedra, que sou eu, em duas vezes,
E duas vezes,
Sou eu, papel e pedra
Duplamente forte,
Eu venci a guerra.

09 October 2006

A BOCA FALA DO QUE O CORAÇÃO ESTÁ CHEIO


O verso era assim:
“A boca fala do que o coração está cheio”
Eu fiz de conta que por fora do meu peito
Havia um fecho éclair dos mais antigos
E pela primeira vez eu quis abri-lo
Para verificar nele o que havia dentro
Fui colocando sobre a cama uns objetos variados
Primeiro uma caixinha chinesa de papelão pichado
Que escondia bem trancadas as minhas friezas
Um lápis mal apontado em cor turquesa
Gasto de escrever meus sentimentos;
Um anel pequeno com pedra incrustado
Cor de abóbora caipira e que fora tirado
Dos doces de compotas do passado
E um missal azul, de capa perolada,
Que me lembrou da divindade que havia
Por dentro do meu coração arrebentado
- Não havia chave para o escape
Nem barco que ventania arremessasse -
Coloquei os objetos no lugar
Fechei a entrada e a saída com cuidado
Meu coração fala tão pouco agora
Do que minha boca falava antigamente;
É por saber que há tão poucas coisas que eu guardo!

MINHA MENTIRA


Quando eu falar de dor
Leia que estou escrevendo de amor
Se eu falar em sofrimento
É puro divertimento
E se falar que sonho,
É porque não sonho mais.

AS FITAS


Dedico este poema à minha, até hoje secreta leitora, Márcia, que me acompanha diariamente nas minhas dores e tão poucas alegrias que registro, incansavelmente registro. Ela também me lê, incansavelmente, e em mim reconhece que o sofrimento do poeta só não é maior porque a poesia nos recria e salva.
Obrigada Márcia, por me ter me falado coisas tão especiais, que depois delas, só pude transformar as minhas dores negras em cores avivadas. Graças a você. O coração porém... este precisa ainda de cuidado.
+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
Hoje eu quero me enfeitar de fitas
Um laço nos cabelos, dois laços na virilha;
Os nós entrelaçados de cetim
Púrpuros, escarlates ou verde oliva,
Esmaecidos tons pastéis por cima do umbigo
Um laço cor de rosa em cada dedo
Um laçarote azul atando o pensamento.

Cada cor em seu lugar me contará a história
Em que foi preciso transmutar a dor
Mudar-lhe seu matiz
E transformar o outrora cinza desesperançado
Pela cor vigente da razão e sorte

E sobre o peito,
Este peito arrasado pela vida
Este peito que sofre todas as taquicardias
Que arde e que repele,
Que busca e que não acha
Por sobre esse peito ainda tão dilacerado,
Uma fita preta
Perene aviso de decepção e perda
O símbolo da angústia e da passagem,
O luto que ainda vive em mim
Mas que não passa.

ALMA SERENA


Estive refletindo sobre o consumismo depois de uma conversa ontem à noite. Descobri a falta do desejo de consumo em mim, descobri que neste momento e talvez, ja há algum tempo, venho me bastando, eu e eu mesma , sem mais espaço para nada e para mais ninguém. Acho que a maturidade tem esse papel férreo de impor às nossas almas já mais experientes a reflexão dos nossos atos. Tanto há a descobrir, a adquirir, a aperfeiçoar em nós, alguém por favor, pode me explicar se há aqui fora alguma coisa que compense a virtude e a humildade de nos sentirmos neste momento, grandes descobridores de nós mesmos, tesouros ainda por traçar e buscar, os mapas pessoais com rotas pela metade?
Se esse período vai durar nunca se sabe, mas o caminho é longo e é certo que não terminarei jamais. Eu, você, todos nós, as obras inacabadas.


Mais uma vez sai à rua e não comprei nada
Vejo pessoas na ânsia leve de consumir tudo
Mas o tudo ainda é irrisório
Para este poeta que não vê sentido
Nem razão para trazer algum embrulho para casa
Saio comigo mesma
E volto cheia de mim
Tenho adquirido facetas todo dia
Que ainda desconhecia únicas e minhas
E me compadeço profundamente pelos outros,
Que me parecem tão felizes,
Trocando dinheiro por mercadorias
Centavos por migalhas,
Notas por prazer de trocar, trocar, trocar,
Quando não se dão conta
Que nunca foi preciso adquirir
Possuir, apossar-se.
Agradeço à minha alma serena de hoje
Que gosta mansamente de ensinar
Que dentro de nós há o que baste
O desconhecido em nós
O " x" da questão, o enigma da pirâmide
O caminho da saída de dentro do labirinto mitológico
O Minotauro da realidade em nós,
O fio da meada
Há muito pra se conseguir no íntimo da vontade
Não posso me distrair com mais nada.

08 October 2006

VIDA CHATA


Meu Deus, que domingo!
A cabeça do sábado ainda dói
As pernas da sexta feira teimam em se arrastar
O trabalho da quinta estafante pesa em chumbo
A paradeira da quarta me azeda
A terça que amanheceu chuvosa só sufoca
E a segunda pavorosa me afoga
Que domingo terei que enfrentar?
Os móveis empoeirados nem sabem que é domingo
Mas eu sei que é dia de preguiça e tédio
Estou aqui, à espera, inerte
De preparar as pernas para a sexta-feira
Esvaziar a cabeça para o sábado
Melhorar a terça nebulosa
E todos os dias subseqüentes dessa vida chata
Meu Deus, que vida chata!

06 October 2006

SOFRIMENTO DO POETA


Ah, o sofrimento do poeta;
Hoje posso sentir todas as dores
Não porque sofra as mágoas exteriores
Mas é quero escrever, quero falar,
Mas nada vem à minha mente
Não é maior a dor de um sentimento falho
Nem a tristeza por estar vivendo
Do querer falar e não poder
Porque as palavras me abandonam

E fogem para sempre.

A SAGA DE LAMPIÃO E MARIA BONITA


Ele não era um Lampião de fato
Nem ela Maria Bonita tão bonita assim
Mas se davam, na cumplicidade de todas as revoltas.
O Falso Lampião era mascarado de fato
E Maria Bonita deixou de se enfeitar
Pra se tornar tão áspera
Quanto o tratamento que lhe era dado
Maria Bonita se acabou
Nas mãos do Lampião desnaturado
Sobrou
Maria, antes bonita,
No nome e no pecado
Lampião, desmascarado,
Quando antes fora respeitado
Bonita história
Precisaram ser felizes
Agora, cada um para o seu lado
Ponto final
Não há romantismo numa luta dessas
Romantismo pertence aos romancistas
Lampião e Maria Bonita
São a parte crua da realidade.

05 October 2006

INOPERANTE


Eu não vou falar que vou
Por que o verbo de movimento ir é muito trabalhoso para mim
Requer as pernas e requer coragem
Requer visionar linhas de paisagens
Requer preparar a matula e seguir em frente
Então eu vou falar que fico
Porque o verbo ficar
Requer que as pernas se estendam no infinito
Os olhos se desmanchem sobre a cama
Meu tórax se expanda em flor de bananeira
E que eu fique assim
Poeta, ociosamente poeta,
Um poeta estático e inoperante
- Como dizem os técnicos das máquinas -
E não vou me mover mais um milímetro
Os poetas não são de movimento
O movimento é o que intriga o poeta
Poeta é ser, é viajar por dentro
Não há nada lá fora que o atraia.

04 October 2006

EU, PASSARINHO


Se esse passarinho que vejo planando lá em cima
Soubesse que é igual a mim
Não tem pouso, não tem morada,
Não tem projetos adiante
Não tem nenhuma visão
Viria aqui pra minha cama,
Se deitaria ao meu lado,
E ficaria tão triste,
Por saber que ele tem asas
Mas não sabe sair do chão.

SOLIDÃO E ARQUITETURA


Era assim, uma casinha,
Uma chaminezinha
Uma portinha
Uma familinha lá dentro
Que se esquentava com o calor do fogão
Agora é assim
Uma casa grande, escura e fria,
Sem chaminé, sem janelas
Porta trancada pra fora e pra dentro
Dois porta retratos mostrando a família
Que não esquenta nada
Agora é solidão
Solidão não é sentimento
Acho que deve ser Arquitetura
É espaço.

03 October 2006

O COELHO IMAGINÁRIO


Apareceram com um coelho lá em casa
Branco, grande, de olhos cor de rosa.
O coelho ficava num jardinzinho da frente comendo tudo
Eu, encantada com aquele ser que eu pensava ser imaginário;
Tão perfeitinho ele era, tão irreal...
Um dia roubaram o coelho
Ou a cerca era baixa e o coelho pulou
Mas coelhos não pulam cercas
Não comem de tudo
Não têm olhos de cor de rosa
E a maldade existe
Hoje é que vejo que eu é que sou imaginária
E irreal
Vai ver que o coelho morreu logo depois
Eu não, eu continuo vivendo da mesma forma que ele;
Ou ainda estou sendo roubada pela vida,
Anonimamente, continuamente,
Ou pulei a cerca
E vim morar do lado de cá.

MAIS ÓTIMO


A vadiagem tem o momento mais ótimo
Que é quando a gente se distrai com a gente mesma;
Mais ótimo é o máximo em vadiagem
O mais ótimo sou eu parada olhando a palmeira balançar
E com os meus olhos, divagar;
E devagar,
Acompanhando o movimento das ramagens
Que vão pra lá
E vêm pra cá.
Outro dia me disseram que mais ótimo não existe.
Existe.
O mais ótimo dos mundos
É esse mundo meu,
Que vejo movimento nas folhas da palmeira
E penso que é o carrossel de antigamente
Que passa agora pra me levar pro céu.
O céu é que é o mais ótimo
Lá deve ter pura vadiagem
Sem condenação e sem culpados
O resto é bobagem.

PREGUIÇA


Na minha solidão de agora
Quero reunir o que sobrou
Um pé de pitanga
O espaço onde eu circulo
Uma foto minha, meus dentes muitos brancos
O livro de cabeceira à espera de ser lido
O vestido marrom que não me lembro
As orações que fiz e que estão presas no teto
Alentando o cumprimento das promessas
Um cinzeiro luminoso e limpo
Duas mãos que estão se cruzando no peito
Aquele crucifixo de prata que envelheceu comigo
E o sentimento que ainda nem sei
Se é dúvida
Se é monotonia,
Preguiça de reunir os objetos
Preguiça de imaginar o que vou ser.

QUEM ME ACOMPANHA


Daqui de cima, vejo um homem baixo
Levando um cachorro pela coleira, arrastado
É um cachorro pequeno, escuro, nervoso, irado
E que merece sair pra espantar a raiva
Eu tenho a minha poesia que me acompanha todo dia
Não passeia comigo, nem a distraio,
É uma companhia que me segue, intacta,
Não é silenciosa, nem ruidosa
Não se farta de mim e nela nao há cansaço
É só uma poesia pequena, mas mansa e triste
Não precisa sair para amainar sua dor
Não espanta ninguém,
A não ser a mim mesma,
Que vejo, deslumbrada
Que ela não me leva, nem eu a levo a nada
Mas que não me larga
Não me larga
Nem me dá trégua, nem descanso
Apenas uma pesença em mim, como um estado,
Uma poesia assim, em mim, entrelaçada.
Às vezes penso que sou eu que ando às tontas
Mas a poesia me diz que não e me amalga,
Às tontas e à beira da razão, atada.
É que eu ainda sou aquela de olhinhos fundos
Esperando que a vida um dia me arraste
Mas a poesia não deixa,
Me finca no espaço.

MEU PAÍS


Agita-se meu país,
Há eleições no ar
É preciso que haja consciência
Grita o monitor deTV, o rádio berra, o panfleto da rua me inibe.
O homem que colou um adesivo em meu carro
À minha revelia,
Impôs em mim um sentimento de inutilidade
Onde eu quero pensar sozinha, e isso não me cabe.
Meu país é um pobre coitado
Que nem sabe ainda o que é
Como eu,
Que me agitei ontem, e me agito hoje,
Que nem sei quem sou
A não ser pela poesia que berra,
Pelas palavras que gritam.
E por todos os sentimentos que me inibem.
Lá fora, há eleições;
E que consciência tem minha poesia,
A não ser que há necessidade de viver,
Viver, viver,
À revelia da minha vontade?

02 October 2006

LIBERTAÇÃO


A libertação não veio só no dia do estrondo
Com marcha e tropa segurando bandeira
E rufando tambor
Libertações nao acontecem no dia e hora em que se dão
Acontecem bem antes, devagarinho,
Pacifica, primeiro em nós
E depois,
No escândalo, nos gritos, na revolta
Mas a gente diz, atordoada:
Por que tanto barulho?
Há muito eu já era livre.

MEU BEM QUE ME ESQUECEU


Quando um bem esquece a gente
Que desastre há dentro de mim
As flores nascem na grama
O vento sopra ao contrário
As freiras retiram o hábito
A água vira vinagre
Os passarinhos coaxam
No céu há muitas baratas
As garças comem pastel
E tudo fica em desordem
Porque um bem me esqueceu

01 October 2006

AS DUAS SOLIDÕES


Há duas solidões, a boa e a má
A má solidão foi quando eu fazia coisas para que o tempo passasse
E o tempo passava na solidão de mim
A boa solidão é a mais simples
É observar o tempo passando por mim
Enquanto faço coisas,
Ou também quando não faço
A boa solidão não prescinde do tempo
Das coisas, de gente, tempo ou fatos
Não me esvazia
Não me aborrece
Só me compreende,
Me aceita, me perdoa,
Me dá e recebe,
E generosamente
Me basta.

SE ESSA RUA


Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava
Que fechassem a entrada e a saída
Que a cobrissem com um lençol branco
Por cima, atoldoada
E no chão, acolchoada
Que todas as tropas vigiassem o quarteirão
Para que eu imaginasse
Que o mundo fosse somente essa tendinha branca
Etérea, por onde sol só transludisse
A lua nem invadisse
E eu ficasse, quietinha, quietinha,
Me enganando, me enganando,
Que lá fora não existe