A primeira vez que ouvi falar em Curupira foi quando era criança e provavelmente num desses contos assustadores de antigamente que tinham um único objetivo: nos mandar cedo pra cama. A cama nos recebia, porém, o medo que se instalava era coisa de doido e a psicologia de antigamente servia não só pra espantar fedelho mas pra instaurar na gente um pavor perpétuo no futuro. Inseguros que somos, aí a fonte de produção dos psicopatas de hoje.
A lenda do Curupira trata do seguinte “Curupira, de”curu", abreviação de "curumi" e "pora", corpo ou corpo de menino. É a "Mãe do Mato", o tutor da floresta, que se torna benéfico ou maléfico aos freqüentadores desta, segundo as circunstâncias e o seu procedimento.
Ele possui várias formas apresentando-se através de uma figura de um menino de cabelos vermelhos, peludo, com a particularidade de ter os pés virados para trás (no rio Negro); ser privado de órgãos sexuais (Pará); com dentes azuis ou verdes e orelhudo (rio Solimões).
O Senhor das Florestas, de aparência andrógina, às vezes muda conceitualmente. Em Sergipe, mostra-se sempre gaiato e, brincando faz o viajante rir até cair morto. Por isso talvez, que ele seja venerado como "espírito cômico". Passando pela Bahia, sofre aí uma transformação completa e não só muda de nome como de sexo, aparecendo sob a forma de "caiçara", cabocla pequena, quase anã, que anda montada num porco.
Depois o Curupira sumiu da minha imaginação e da roda das conversas. O tempo foi passando os contadores de histórias foram morrendo, ninguém se lembrava mais de florestas e mato, a civilização foi ficando mais arraigada em nós, morremos para o Curupira e o Curupira morrera em nós.
A segunda vez foi há tão pouco tempo, o nome Curupira surgiu como batismo de um parque inaugurado as secretas por um prefeito que tivéramos, muito apreciador da natureza. Detalhe, o parque estivera sendo modelado, construído até, às duras penas, sem que ninguém, nem eu, vizinha de frente do lugar, soubéssemos ou imaginássemos.
Havia, é lógico, uma multidão de trabalhadores braçais vestidos de macacão azul e laranja que todo dia desciam do ônibus municipal, embrenhavam-se na pedreira, saiam à tarde com a cara mais lavada do mundo, ninguém desconfiava. Eles não eram secretas, mas comportavam-se como tal. Ninguém se roia de curiosidade. Por
ninguém, eu digo eu, que até hoje não desconfio nem da coisa mais óbvia que se passa à minha frente.
Ao cabo de alguns meses, começa-se a ler nos jornais locais: “ Prefeitura inaugura Parque Ecológico Curupira à Avenida Costabile Romano, nr. tal.” O que? Um parque ecológico e ninguém sabia?
Ribeirão Preto nunca foi uma cidade de parque, muito menos de árvores, de lagos, de regatos, a não ser o nosso velho e asqueroso estreito rio que cruza a cidade, que acho que se chama Ribeirão Preto, ou inventei agora.
O único trabalho que tivemos foi quando na volta do restaurante no domingo, ao invés de virarmos para a direita, viramos à esquerda, contornamos a ilha, um portão de ferro, pasmem, aberto, sim, eu disse, a-b -e -r -t -o , abria caminho para o que foi então a segunda aparição do Curupira para mim desde a infância. Entramos de carro, uma ladeirinha asfaltada, subimos o primeiro lance, nossas queixos só não caíram porque acho que estavam grudados pelo êxtase. Eu fui a primeira quem disse: Jurassic Park!
Curupira e Jurassic Park juntos certamente dão um samba que neguinho nenhum pode imaginar. As cavidades esculpidas da pedreira (basalto, me informaram anos depois, não consigo me esquecer desse basalto) lembravam perfeitamente as cenas do filme da era dos dinossauros ressuscitados. Claro que estou descrevendo um parque que ainda não fora inaugurado, não havia flores, não havia gente, não havia grama, só parque, silêncio e material acumulado da obra recém acabada.
Assustador. Uma arena à frente sugeria um palco, e foi mesmo destinado a ser palco, eu saberia depois. Palco pra dança, palco pra orquestra, palco para noivos tirarem fotografia e minha amiga do peito praticar tai chi uma vez por semana, e olhe que gratuitamente.
Alguém gritou: Tem encanamento! Tinha. Depois ficamos embevecidos por entender que seriam as cachoeiras (riram de mim quando falei cachoeiras, achei melhor mudar pra queda d´água).
O impacto. Assaltador. Árido. Em nada, familiar. E em frente à minha casa!
Aqueles dias seguintes foram de sofrimento para mim, não porque eu ansiasse pela abertura do lugar ao público, não, isso depois eu viria a descobrir que seria um verdadeiro inferno jurássico, crianças com ônibus, ônibus com idosos, idosos com ou sem ônibus, sem falar nas passeatas e lançamento de sorvete.
Não, a simples presença do parque em frente ao sono que me vigiava, ao café da manhã que eu tomava, e lá estava ele ali, grande, quieto, que nem precisava de gente lá, era o meu estado ante aquele gigante em espírito montado e perturbador.
À hora de ir dormir, conseguia evocar a história dos velhos da família, o Curupira vinha, os pés para trás, me assombrar a noite inteira, .
À noite o parque me parecia pavoroso. Não porque eu fosse caminhar por lá, nunquinha, mas porque ele existia ali, bem à minha frente, poucos metros a me afastar daquela imensidão que eu julgava escura, entrevada, seca.
Mas de manhã, nos dias de semana, pessoas trabalhando e seguindo sua vida, aí sim, depois da inauguração, que foi em grande escala, acredite, tantas inaugurações, tantas camisetas por ali, tantas conversinhas pela cidade com a mesma pergunta inicial: “ Você já foi ao Curupira?” Quem foi, foi milhares de vezes, quem não foi, era impelido a ir, até gente de cadeira de rodas chegava cercado de familiares, nunca vi tanta comoção por causa de um parque. Ecológico. Mais que isso, Curupira.
Voltando ao “de manhã” , pois acabei me distraindo com a inauguração, depois de tantas inaugurações, o que era fantástico passou a ser ordinário, e aqui eu explico, simples, comum. Aí, sim, era a hora que eu podia atravessar a avenida, percorrer a ilha gramada e atingir o outro lado, vestida de tênis, malha, óculos de sol e boné, e andar por ali, céu azul e ensolarado da cidade, subir as trilhas, avistar a cidade de lá de cima, me sentar nos banquinhos de cimento, observar as formas redondas ou atléticas dos freqüentadores.
Grande parque, assustador ainda, mas um espetáculo a cada entrada, a cada vislumbre, a cada gotinha de queda d´água, artificial, eu sei, mas ainda, assim despencando frescor nessa cidade quente.
Depois vieram as carpas, muitas negras, poucas alaranjadas, as tartarugas, que a gente gostava de alimentar, as pouquíssimas árvores que cheguei a inquirir porque não se plantava mais, a grama que foi virando um charco até que deram jeito, há bem pouco tempo.
Toda semana, uma novidade, toda semana eu estava lá, plantavam uma florzinha, eu via. Retiravam uma pedra, eu também via, aparavam a grama, eu aplaudia.
Um dia mudei de lá de frente, mas confesso que foi um alívio. O barulho era infernal, até circo e parquinho de diversões instalaram ao lado do prédio, penso que acharam que fosse um complexo temático, eu achei um inferno astral que nenhum Feng Shui dava jeito.
Também a presença da massa rochosa parada à frente da minha janela nunca dissipou a estranheza de percebê-la tão próxima. O silêncio da noite jamais me confortou depois que esse parque apareceu, embora essa pedreira já estivesse lá desde o inicio da Humanidade, com seus macaquinhos e pássaros pequeninos. A inauguração foi o que chocou, o portão é que me enclausurou, as paredes basálticas é que me espremiam para dentro do meu próprio apartamento.
Hoje vou raramente. Tem árvores novas, gente nova, pedra nova, mas as pistas e as quedas d´ água continuam por lá, intactas.
Quando vou, dou algumas voltas nas trilhas, mas gosto mesmo é de me sentar num banco de cimento, olhar tudo sob o sol da manhã, achar graça num empreendimento esculpido por homens, mas é o Curupira que ainda impera, personificado também em cimento num canto de lá, pequenino, feio, cheio de poder, porém. Eu ainda sei, ele é a magia, a lenda, o mito. O Amedrontador.
Sabia que tem gente que acredita em Curupira?